quinta-feira, 18 de junho de 2015

Paschoal Carlos Magno e Ricardo Guilherme

Paschoal Carlos Magno e Ricardo Guilherme, em 1978
Tive o privilégio de conviver com Paschoal Carlos Magno (1906-1980), grande animador cultural do século XX, em todas as artes, sobretudo o Teatro. Quando o conheci pessoalmente, em 1977, eu estava prestes a fazer 22 anos. Ele já havia completado 71. Aparentava ter bem mais. Porém, continuava em atividade, movido por uma campanha quixotesca pela preservação da sua Aldeia de Arcozelo (Pati de Alferes/RJ), pois sonhava em fazer desse sítio uma escola de artes.

Ali resistiam alguns equipamentos: alojamentos, teatros, um cinema, um restaurante, biblioteca, pinacoteca, salão de exposições, piscinas, campos de esportes etc. Todo o aparato, no entanto, estava deteriorado e sem organização sistemática. Seriam necessários investimentos expressivos para recuperar e colocar em funcionamento a Aldeia (que hoje pertence à Funarte e ainda não está apta ao sonho de Paschoal). Numa das dependências da Aldeia encontrava-se o acervo de todos os projetos que Paschoal, desde a década de 1930, houvera liderado em favor da cultura brasileira. Foi em função desse acervo que nós nos aproximamos.

Era 1977. O então Museu Cearense de Teatro (hoje Doc.Teatro/UFC) - que eu havia criado em 1975 - funcionava no foyer do Teatro José de Alencar. Paschoal estava em Fortaleza. Ele vinha sempre e sempre se envolvia com qualquer reivindicação teatral, pelo Brasil afora. Numa dessas visitas ao Ceará, por intermédio de B. de Paiva, propus que o Paschoal visitasse o Museu e a sua presença em nossa exposição selou uma amizade que duraria até a sua morte, em maio de 1980. No livro de visitas do Museu ele deixou esta mensagem: Velho combatente do Teatro Brasileiro, eu me comovi até as lágrimas visitando este Museu de Teatro, obra de perseverança, de idealismo de um homem como Ricardo Guilherme que realiza – desamparado das autoridades - uma obra de amor e inteligência.

Depois de percorrer a exposição, fez o convite para que eu fosse ao Rio organizar o material alusivo ao Teatro de Estudantes do Brasil, grupo que ele havia fundado em 1938. Constava também do material guardado a referência dos Festivais Nacionais de Teatro que o Paschoal havia produzido a partir dos anos 1950. Poucos meses depois do convite, tomei um avião e fui ao encontro dessa missão. Dei, então, início ao trabalho de organização e classificação de um imenso acervo de fotos, cartazes, programas de peças, livros, textos datilografados etc. Sozinho, numa sala gigantesca, fiquei trabalhando, dia e noite, por um mês e meio mais ou menos, período em que pude organizar tudo e dispor de forma improvisada, pois não existiam recursos técnicos nem financeiros para expor o material nas condições devidas.
Passamos o natal de 1977 juntos na Aldeia. Ele disseminava uma pontual melancolia, mas também um certo humor. Paschoal sofria, entre outros males, de angina, e algumas vezes, em suas crises, tive de auxiliá-lo, colocando o comprimido sublingual que atenuava as fases agudas da doença. Caminhava com dificuldade. Arrastava-se, praticamente. E nos momentos mais cruciais, ficava ansioso, irritadiço e imobilizado, sem condições mesmo de tomar providências para aplacar a angina. Era um visionário. Em sã consciência, não deveria estar ali nem morar sozinho, já que sua saúde exigia cuidados especiais. Entretanto, teimava em não se entregar aos achaques das doenças, com uma disposição quase suicida. Era emocionante ver aquele mito do teatro brasileiro resistir, continuar sonhando, tentando levar adiante, sem grandes apoios, seu empreendimento.

Tão logo dei por concluída a minha tarefa na Aldeia, ele me escreveu uma carta com palavras de agradecimento. Queria pagar pelo meu serviço. Eu não aceitei. E então ele propôs: Peça alguma coisa, leve um desses quadros. Na sua pinatoteca, repleta de Portinari, Pancetti, Di Cavalcanti, Aldemir Martins, Tarsila do Amaral e muitos outros quadros valiosíssimos, havia também esculturas, e, dentre elas um busto do próprio Paschoal, feito em bronze por Humberto Cozzo. Eu escolhi a escultura e justifiquei minha escolha, dizendo: Vou colocar esse busto no acervo do Museu Cearense de Teatro, como uma homenagem a você. E assim aconteceu. Ao chegar de volta, já em Fortaleza, instalei no foyer do Teatro José de Alencar a escultura. Paschoal veio para a inauguração que coincidiu com o lançamento da revista Dyonisos, em edição especial sobre o grupo Teatro de Estudantes do Brasil, publicada em 1978 pelo Instituto Nacional de Artes Cênicas.

Quando ele morreu, em 1980, o B. de Paiva resolveu propor à Reitoria da UFC a adoção do nome Paschoal Carlos Magno para o Teatro Universitário. Criou também uma praça no pátio interno do Curso de Arte Dramática da UFC e eu tomei a iniciativa de doar à Universidade a escultura em bronze que o Paschoal havia me ofertado. Pensei que bem mais significativa seria a homenagem se a escultura ficasse para sempre naquele espaço público e não no acervo do Museu. Quando no Teatro Universitário fizemos em 1981, sob a direção do B. de Paiva, a peça Cantochão Para Uma Esperança Demorada, o Teatro passou a se chamar Paschoal Carlos Magno e inauguramos a tal praça, em cujo centro figurava a imagem do Paschoal. Em 2001, por causa de mais uma das muitas reformas que sofreu o Teatro da UFC, a referida pracinha deu lugar ao que B. de Paiva denominou de Teatro ao Livre Gracinha Soares. A herma de Paschoal foi, então, levada para o interior do prédio. No ano 2006 acontece a transferência do Teatro Gracinha Soares para uma das salas do Curso de Arte Dramática e volta a existir (defronte ao Teatro Universitário, Av. da Universidade,2210), um local que atualmente expõe a estátua de Paschoal.

Algumas vezes, nos anos 1978 e 1979, Paschoal Carlos Magno hospedava-se , quando vinha ao Ceará, na casa dos meus pais. Foi lá, por exemplo, que gravei uma entrevista com ele que depois figurou no livro Depoimento Pessoal publicado pela Imprensa Universitária da UFC. Esta entrevista faz parte hoje do Arquivo Nirez. Um dos instantes tragicômicos do nosso diálogo é a resposta que o Paschoal me dá quando pergunto se ele, depois de tantos serviços prestados ao Teatro Brasileiro, ainda gostaria de fazer alguma coisa. Indaguei: Qual o sonho que você ainda quer realizar? E ele: Morrer.

Quando Paschoal morreu, em 24 de maio de 1980, B. de Paiva (que estava morando em Fortaleza) e eu nos encontramos à noite no Curso de Arte Dramática da UFC. Choramos. E a comoção se fez ainda maior em função de uma cena: o B. arranca algumas bambolinas pretas do Teatro Universitário e com elas cobre a fachada do prédio em sinal de luto.

(texto Ricardo Guilherme)

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