domingo, 2 de agosto de 2015

Luz No Teatro

Escuridão total. De repente, Fiat lux! No palco se faz à luz. Começa a representação. E é ai que se percebe que, assim no teatro como no verbete do dicionário, não é por acaso que o verbo iluminar significa não apenas irradiar luz sobre algo ou alguém mas possui também acepção de esclarecer. Em teatro o recurso da iluminação mostra um cenário e apresenta dentro dele as personas no ator, mas principalmente determina o que neste contexto deve ser olhado, ensejando reprocessamentos simbólicos e estados de animo no espectador, na perspectiva de direcionar o olhar da platéia e de assim, subsidiá-lo de informações e instrumentos teóricos. A iluminação, a partir do modernismo e ainda na contemporaneidade, tem a vocação de selecionar e substanciar espaços, gestos e gestas, estabelecendo graus de visibilidade mas sobretudo constituindo linguagem e premissas semiológicas.

No Brasil, os experimentos de Renato Viana nos anos trinta do século XX e posteriormente a maturidade da experiência de Ziembinski na década de quarenta fundam a modernidade no concernente à utilização dos recursos de iluminação teatral. É na peça Vestido de Noiva (1943) de Nelson Rodrigues, marco fundador do moderno teatro brasileiro, que a iluminação supera seu papel de apenas reproduzir o real para assumir o de produzir o irreal, o surrealismo das imagens e a atmosfera onírica. As ações nelsonrodrigueanas em tempos diferentes e simultâneos (realidade, memória e alucinação) propiciam a Ziembinski romper ditames acadêmicos e instaurar uma iluminação na qual a subjetividade da personagem se sobrepõe à imposição de um mimetismo da realidade.
A partir de então, o ato de iluminar transcende o sentido de clarear uma determinada área do palco ou do ator e adquire a dimensão de emprestar significados à cena. Como certa vez definiu o iluminador do Teatro Radical,Karlo Kardoso, iluminar não é clarear. Sim, porque para enfatizar determinadas zonas do palco ou determinadas situações cênicas, a escrita do iluminador tem de dotar algumas outras zonas de menores intensidades de luz, a fim de privilegiar ações e espaços que devam ser destacados, de acordo com a narrativa.
A luz teatral predispõe o publico para a cena, pre-estabelecendo climas dramáticos nos quais a personagem vai atuar. Essa predisposição se caracteriza, dentre outros recursos, pela seleção de cores. As conotações que as cores indicam são respaldadas nos nossos arquétipos, na nossa memória de emoções e sensações. É obvio que se pode e ate se deve subverter esta memória cromática que inconscientemente preservamos. Entretanto, mesmo a transgressão que repudia a memória, parte do real para se opor a ele.
Esse memorial das cores amplia-se então, em uma gama incomensurável de tonalidades, não obstante haver um certo consenso cromático advindo do inconsciente coletivo, ao qual o universo iconográfico do iluminador se amolda para gerir e gerar novas identidades.
O iluminador, em primeira instância, trabalha essa memória consensual inconsciente porque sabe que esse acervo de referência sentimental das cores contem potencialmente cristalizações emocionais e sensoriais que são o referencial de anos de aprendizado do espectador. Conhecedor desse patrimônio de memória afetiva vinculando às cores que espectador trás consigo, o iluminador, nutrindo-se de empatias, se capacita, então, a criar novos padrões e paradigmas cromáticos, estimulando a imaginação da platéia na complexa tarefa de engendrar uma correspondência plausível entre o sentimento/pensamento e sua tradução em cor.
A iluminação exerce ainda a função de informar o tempo em que ocorre a ação e delimita os espaços desta ação. Esse poder de delimitação da luz atinge, além do espaço cênico, o corpo do ator e quaisquer outros componentes da cena, já que os fachos dos refletores, hoje, são como câmeras teatrais que se fecham em close-up, condicionando o olhar do publico ao que deve ser visto, mesmo sendo o alvo minúsculo: uma parte do rosto, um ponto do cenário etc.
Com o advento dos refletores, o diâmetro do foco em oposição à luz geral peculiariza a cena contemporânea, com seus movimentos de abertura e fechamento dos campos de difusão. Essa dinâmica propicia à iluminação ter, na atualidade do teatro, um sentido cenográfico. Lentes podem restringir ou expandir a difusão da luz para indicar áreas de atuação e sugerir locações. Aparatos como os gobos, com desenhos em recorte colocados à frente dos refletores, podem através de contornos refletidos espalhar formas no ciclorama. É possível ao iluminador desenhar até mesmo no ar, pois o raio de difusão deixa rastros na trajetória da vara de luz até os corpos iluminados. Sobretudo se esse percurso for demarcado pela utilização de fumaça.
A iluminação também recorta figuras humanas e objetos por intermédio do chamado contraluz que empresta profundidade e volume às figuras. A inadequação de um contraluz pode achatar pessoas e coisas, bem como destruir a perspectiva de um cenário. A luz tem ainda o poder de interferir substancialmente na cenografia ao transfigurar texturas e colorações, qualificando ou desqualificando o trabalho do cenógrafo. 
A criação do iluminador, incidindo sobre todos os demais componentes do espetáculo, desvirtua ou ressalta as qualidades destes. Nos atores, a iluminação age sobre a cor da pele, sobre a maquiagem, sobre o figurino e a idéia de volume que a roupa delineia. Até mesmo com a sonoplastia a luz se inter-relaciona, se for considerado que para cada sugestão dramática proposta pela trilha sonora pode haver uma aura de iluminação correspondente. 
Porém, em todas as instâncias, a correlação mais estreita do iluminador vem a ser com o diretor do espetáculo. Com ele é que são acordados os procedimentos de luz na implementação da narrativa. Cortes súbitos, escurecimentos totais ou parciais, gradativos ou lentos determinam a fruição no entendimento do espetáculo pelo espectador. A concepção da luz possibilita ao diretor dividir a peça por cenas ou por bloco de cenas, alem de pontuar com efeitos de luz o desenrolar das unidades, demarcando limites. O emprego desses recursos depende não somente de estratégias de linguagem, mas, é claro, de condições técnicas, como, por exemplo, da quantidade e do desempenho dos equipamentos de luz disponíveis pela produção do teatro. 
Entretanto, dispondo de parcos materiais ou de mirabolantes meios tecnológicos de expressão, cabe ao iluminador enquanto artista a função precípua de iluminar no sentido metafórico de dissipar sombras, alumiar caminhos para a percepção. Afinal, assim como iluminar é também esclarecer, não é a toa que o termo luz se relaciona radicalmente com a palavra lucidez. 

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