Realizada no Teatro Universitário/UFC por Magela Lima, para o acervo do Museu da Imagem e do Som do Ceará, em 20 de Março de 2010
Parte I
ML
Bem, nós estamos em Fortaleza no Teatro Universitário Pascoal Carlos Magno da Universidade Federal do Ceará. Eu sou Magela Lima e tenho o fardo de fazer uma entrevista histórica com ninguém menos que Ricardo Guilherme. Antes de mais nada, Ricardo, eu queria começar dizendo que se essa entrevista é histórica pra você que tem 40 anos de carreira, imagine pra mim. É muito mais histórico e transformador pra mim do que pra você. E quero começar agradecendo a oportunidade e perguntando: qual o seu lugar no teatro cearense? É o lugar de intérprete, de encenador, de dramaturgo, de pesquisador, de professor, de agitador da cena? Qual o seu lugar no nosso teatro?
RG
A resposta, digamos, mais emblemática seria dizer que o meu lugar é o do ator, do pesquisador, do historiador. Mas a verdade é que a vida me colocou em outros lugares, em todos esses a que você se referiu. E se estou reconhecendo em mim essa multiplicidade não é por eu ter premeditado estar nesses diversos âmbitos de atuação. Não. É que as circunstâncias foram me fazendo atuar em todos esses campos. Eu gosto disso, gosto de ser essa multiface e realmente me interesso por todas essas áreas que vão além do próprio teatro, já que tenho atividade na literatura, no jornalismo, no rádio, na televisão. Então, esse espectro transcende o espaço, a circunscrição do teatro.
ML
Mas em qual desses papéis você se sente mais confortável?
RG
Em nenhum. Todos são fascinantes, mas com todos eles tenho uma tensa relação de prazer. Não entro em cena nem escrevo para teatro com a tranqüilidade de quem acha que já sabe e a priori domina. Nada eu faço supondo de antemão que já sei. Como diz o personagem Waldemar Garcia no meu texto Rá!: “Teatro a gente vai sabendo, teatro se faz no gerúndio”. Por isso é que não me sinto totalmente confortável em nenhum desses lugares ou papéis, embora eu tenha acumulado experiência em todos. Isso quer dizer que tudo que faço é sempre com a postura de quem quer aprender, inventar, inovar, querendo, enfim, encontrar um aspecto inusitado que não foi dito ou feito ainda. Não dirijo uma peça como se estivesse em um pedestal que me faz saber de todas as soluções. Eu vou sabendo, eu vou aprendendo e só depois que faço a peça é que sei. Escrever também é pra mim um parto de pesquisa. Consulto muitos livros, duvido, sou advogado do diabo de mim mesmo e fico quase o tempo todo me perguntando: Será que é isso mesmo? Então vou pesquisar. Escrevo e me confronto comigo e com a opinião de outras pessoas às quais mostro o que escrevo. Nesse sentido é que não estou confortável em nenhum desses trabalhos. Agora, o que talvez me dê mais adrenalina, sem dúvida, é a atuação, aquele momento em cena em que não consigo pensar em mim. Nem em mim nem em nada porque se instala alguma coisa mágica, mágica não de alguma origem sobrenatural, mas mágica da pulsão do corpo, da concentração, da energia, pura energia, fruto dos ensaios. No instante da atuação em cena se efetiva algo que surpreende inclusive a mim, mesmo considerando um certo rigor a que eu me imponho. Esse estágio em que o ator se coloca no palco é algo indescritível. Isso me dá uma endorfina, um vigor que nenhuma outra atividade me dá, nem o escrever, o dirigir ou o supervisionar direções e dramaturgias que eu, aliás, adoro.
ML
Nesse processo de gerúndio que você se lembra do Waldemar, em que momento você se dá conta de que deixa de ser um artista normal? Em que momento você percebe que ultrapassa esse extremo, esse limite da normalidade de um artista e passa a ser uma estrela, uma referência, um grande nome? Isso é algo perceptível?
RG
No teatro a palavra estrela é uma expressão tão estigmatizada, não é? Digamos, referência. Eu penso que o auge disso seria a criação da poética do Teatro Radical, a partir do meu primeiro artigo sobre o tema em 1988 e da primeira peça em 1990. Porque o lugar que eu queria para mim era o de inventor, o de inventor em todas essas múltiplas atividades. Eu realmente não me contento em ser mais um. Gosto de me aventurar, mesmo às vezes sem saber ao certo, previamente, do resultado a alcançar. Eu admiro os inventores. Acho que o meu papel é o de querer inventar tudo, seja na televisão ou como professor, ator, escritor, diretor etc. O que me move é tentar inventar uma maneira própria de fazer as coisas.
ML
Então, esse marco, essa guinada seria quando você deixa de ser um intérprete e passa a ser um...
RG
Um criador...
ML
Um compositor da cena.
RG
O propositor de uma poética. Esse gosto pela invenção, pela singularidade e pela multiplicidade acompanha minha vida. Porque veja: eu comecei no teatro em 22 de março de 1970 e em 1975 já assinava no jornal O Unitário e também no Correio do Ceará uma coluna sobre a história do teatro cearense. Eu estreei em 1970 e nove anos depois fui ser professor do Curso de Arte Dramática da Universidade Federal do Ceará onde criei, dentre outras, uma disciplina chamada História do Teatro Brasileiro. Não me programei, não me predeterminei para atuar nesses vários campos. Foi sempre algo tão natural em mim porque desde cedo eu tinha essa vontade de inaugurar as coisas. Acho que fazer essa ponte entre o passado, o presente e o futuro é que me dá uma marca e me faz ser uma referência...
ML
Uma robustez, digamos.
RG
Robustez de presença. De tal forma que com cinco, seis anos fazendo teatro, as pessoas, inclusive com trinta anos a mais do que eu, vinham me consultar por eu já ter acumulado um saber a partir das pesquisas que estava fazendo.
ML
Esse capital teórico é o que fundamenta sua criação de cena? Pergunto isso porque em tese conhecer muito de história e ter um lastro intelectual não fariam de você um grande artista do ponto de vista da cena que você foi e é, independente de ser um grande pesquisador, um grande teórico.
RG
Pois é. Não. Mas eu acredito que a minha mola propulsora de criação é essa vontade de inventar, de buscar a inventividade. Agora, isso não existe sem o respaldo do conhecimento, um conhecimento que transcende o saber específico da arte do teatro, um conhecimento humanístico. É uma sede de conhecimento que não acaba nunca já que me considero um aprendiz, eternamente um aprendiz. Vivo pra isso. A função da gente é viver pra isso. Então, estou todo tempo criando, pensando e sempre duvido. Às vezes estou escrevendo e me vem a acepção de uma palavra. Aí eu paro e penso: Será que é isto mesmo? Folheio o dicionário o tempo todo. Escrevo rodeado por dicionários de Filosofia, de Antropologia, de História e, sobretudo, por dicionários de língua portuguesa. Mesmo quando acho que estou absolutamente certo quanto à acepção de uma palavra, consulto o dicionário e descubro outras acepções. Aí eu vejo o quanto a palavra é rica e como eu posso usá-la de outra maneira. É isso. Eu sou um estudante permanente, inclusive quando estou dando aula.
ML
Esse medo de saber ou de imaginar que o saber se basta tem um pouco a ver com o fato de você ser um autodidata por excelência? Alguém que estudou sempre sozinho, que não teve um professor, que não aprendeu com alguém...
RG
Talvez. Eu nunca tinha pensado nisso. Aliás, essa entrevista está me fazendo surpresa. Eu pensei que ia ser aquela entrevista estritamente biográfica, mas ela está sempre se oxigenando com outras idéias que passam à margem disso. Quando você, por exemplo, diz que não tive professor formalmente, é preciso considerar que todas as pessoas que conviveram comigo foram meus professores informais, inclusive as de fora do teatro. A gente aprende ao conviver com alguém. Um filósofo que eu não lembro agora o nome diz que “o outro é meu mestre”. Trabalhar com alteridade é que me ensina a ser o que eu acho que sou. Quem me dá a identidade é a alteridade. Eu fico o tempo todo tentando ver o outro ponto de vista e aprender com essa diferença de pontos de vista. Mas você tem razão em relação ao autodidata. Abandonei a escola formal muito cedo, na sétima série. Não foi nada pensado. Não quero que fique parecendo que eu tinha premonições e já sabia com precisão o meu papel e o meu lugar e para onde eu iria. A gente não sabe para onde vai. Mesmo quando você tem uma meta lá na frente, você não sabe; você pensa que sabe e que vai chegar precisamente onde imaginou, mas a vida vai levando você para os desvios. Tem aquela música do Gilberto Gil que diz: “Se eu quiser falar com Deus/Tenho que me aventurar/ Tenho que subir aos céus/Sem cordas pra segurar/ Tenho que dizer adeus/Dar as costas, caminhar/ Decidido pela estrada que ao findar vai dar em nada/Nada, nada, nada, nada, nada, nada/Do que eu pensava encontrar”. É isso. Eu tinha vários outros planos, outras metas, mas fui encontrando o meu lugar, os meus lugares na trajetória.
ML
Ricardo, você fala que abandonou a escola na sétima série e ninguém abandona a escola na sétima série de forma tranqüila. Então, eu queria falar um pouco da sua casa. Como é que seu pai e sua mãe reagiram a essa diferença sua de lidar com a educação, com a formação?
RG
Não foi tranqüila a reação. Eles, na verdade, reagiram da forma esperada que uma mãe e um pai reagiriam. Mas de certa maneira e em outro contexto eu repeti a experiência do meu pai. Até os 30 anos, mais ou menos, ele ainda não tinha concluído o primário. Ou talvez tivesse feito apenas o primário. Saiu de Patos na Paraíba, veio para o Ceará, integrou-se à base do Partido Comunista e decidiu estudar sozinho. Fez todos os supletivos não sei exatamente em quanto tempo, mas o certo é que em um curtíssimo período ele saiu da condição de ex-estudante do primário para a Universidade. Formou-se como advogado. Meu pai era um homem brilhante. Passou em primeiro lugar em alguns concursos. Minha mãe foi e é também singular, uma mulher que começou a trabalhar cedo como funcionária pública, fora dos típicos padrões da dona de casa, uma batalhadora em uma família de onze irmãos. Ela é a mais velha.
ML
Ela é Guilherme ou o Guilherme é ele?
RG
Ela é que é Guilherme, Wanda Maia Guilherme, depois Wanda Guilherme Vieira dos Santos. E meu pai, Almiro Vieira dos Santos. Ela era professora primária, formada pela Escola Normal, quando casou e ele, alfaiate. Depois, ele resolveu estudar. Os dois ficaram nervosos comigo até desde antes de eu abandonar a escola porque eu descuidava dos estudos formais para estar nas bibliotecas. Meu pai possuía uma biblioteca linda, não só com livros de Direito, mas também com textos de Freud, Adler, Jung, dicionários, muitos dicionários ilustrados, enciclopédias, obras da literatura, sobretudo russa, Dostoiévski, Gogol, Tchekov, Gorki e até alguma coisa de teatro. Talvez lá é que eu tenha lido, pela primeira vez, uma peça teatral: “O Neto de Deus”, de Joracy Camargo, um autor de esquerda que escreveu inclusive a história do teatro soviético. A biblioteca da casa dos meus pais tinha um acervo enorme de literatura: todas as obras do Machado de Assis, todas as obras de José de Alencar. E além disso, meu pai tinha uma discoteca gigantesca com músicas de cantores como Orlando Silva, Francisco Petrônio, Carlos Galhardo, Sílvio Caldas e muitos outros.
ML
E esse tesouro era permitido ou proibido?
RG
Era permitido o acesso. Eu ouvia os discos do meu pai, inclusive as valsas de Strauss. A discoteca dele era variada e incluía a emergente Bossa Nova. Lembro que constavam também dessa discoteca exemplares recentes para a época: o primeiro LP do Chico Buarque, o primeiro LP da Nara Leão, o primeiro LP do Tamba Trio. Meu pai sabia desse meu interesse por livros e discos, mas ficava apreensivo quando confrontava esse interesse com o meu desempenho na escola formal.
ML
Ele sabia que tinha algo errado com esse menino que gostava tanto disso e não gostava da escola.
RG
É. Ele chegava a dizer: “Wanda, não adianta esse menino ficar o dia todo na biblioteca lendo esses meus livros, se na escola ele não está bem”. No colégio eu tirava, sei lá, quatro em matemática. Mas obtinha notas boas em algumas matérias como história, geografia, português, língua estrangeira, o francês que eu estudava quando freqüentava o ginásio. Meu pai acompanhava sempre os resultados no meu boletim de notas, mas dizia à minha mãe: “Tudo bem que ele leia esses livros, mas ele tem de cumprir os trâmites da escola formal. E outra coisa é que esse menino vai ter de ler todos esses meus livros de novo porque na idade em que está não tem ainda maturidade para ler Freud, Adler, Erich Fromm, Jung”. Meus pais lutaram muito para que eu me enquadrasse, não só nos estudos. Em tudo: na vida, com os amigos, nos horários. Mas chegou um momento que rompi com a escola e não fui mais.
ML
E entendendo isso como um desvio...
RG
É.
ML
Desvio da formalidade. Entendendo isso como um desvio, quando é que tudo isso se canaliza para a arte? Quando é que esse menino que não cabia na escola formal começa a achar que cabe no palco?
RG
Sempre. Porque eu faço teatro desde a infância. E na adolescência fundei na escola um jornal chamado Etc e tal, feito em mimeógrafo a álcool. Eu mesmo manejava o mimeógrafo e pedia às meninas e aos meninos que escrevessem. No colégio, eu sempre dizia poesias e fazia peças. A primeira imagem que tenho de mim no teatro deve ser do início dos anos sessenta. Talvez 1963. Eu, no auditório do Colégio Crhistus, com menos de 10 anos. Era uma cena sobre a abolição da escravatura. Eu fazia o papel do feitor, açoitando os escravos. Então, se me escalaram, se a professora me chamou, é por eu ter demonstrado ser inquieto, falante e expansivo. Eu gostava de imitar e imitava na garagem da casa do meu pai todo mundo que aparecia na televisão. Faço parte da primeira geração que viu televisão no Ceará. Eu sou de 21 de setembro de 1955 e a televisão no Ceará surgiu em 26 de novembro de 1960. Meu pai comprou um aparelho de TV. Hoje é comum que uma casa tenha televisão, mas nós estamos aqui falando do começo dos anos sessenta, entende? A televisão estava nos seus primórdios e meu pai compra uma.
ML
Sem contar que era caríssimo...
RG
Sim, sem contar que era caríssimo e raro ter uma televisão. No entanto, ele colocou na sala uma televisão em preto e branco para que a gente assistisse. Então, eu via todos aqueles programas e ia imitando. Vi a programação da TV Ceará Canal 2, da fase inicial, ao vivo, de 1960 a 1967. Assisti a muitas daquelas telenovelas protagonizadas pelo Ary Sherlock, Dora Barros, Karla Peixoto, Emiliano Queiroz e Cleide Holanda, dentre outros. Lembro o “Vídeo Alegre”, programa do Renato Aragão, e o “Dois na Berlinda”, com o Marcus Miranda e a Maria Luiza Moreira. Depois chegaram aqui programas em vídeo tape como “A Família Trapo”, filmes como “Bat Masterson” e os desenhos animados. Eu imitava tudo isso, brincando com meu irmão mais novo, Almiro Vieira dos Santos Filho que nasceu em 1961. E também inventava outras coisas. No quintal criava cidades, abria ruas na areia com um rodo e dramatizava acontecimentos para aquela cidade. Enfim, vivi uma infância cheia de imaginação e ficção.
ML
Eu queria pular um pouco dos anos 1960 para chegar em 1970 numa cena amadora, mas de fato já uma experiência artística, não mais lúdica e educativa. Foi um choque para sua família você se tornar artista?
RG
Não digo um choque, mas foi esquisito. Não houve o impacto de uma surpresa porque a família já antevia em mim uma vocação nessa linha. Eu, ainda na pré-adolescência, era um amador no rádio e na televisão. Não um amador no sentido tradicional e estrito da palavra porque naquela época a gente já recebia pro-labore. Ganhava um pequeno cachê. Inclusive no rádio-teatro onde eu ingressei em 1969, aos 13 anos de idade. Desde sempre houve o meu interesse em ingressar na TV Ceará Canal 2 e na Ceará Rádio Clube. Essas emissoras funcionavam no mesmo prédio, ali na Avenida Antônio Sales, esquina com Rua Oswaldo Cruz. Eu acompanhava os ensaios da TV e as gravações das radionovelas até que um dia eu devo ter sido tão persistente nos pedidos àqueles atores maravilhosos que eles me deixaram estrear. As atrizes Ivone Mary e Glice Sales se empenharam em convencer o diretor Gonzaga Vasconcelos quanto à minha estréia. Depois, por causa do rádio, é que fui para o teatro. Antes, eu não era freqüentador de teatro. Possivelmente a primeira vez que entrei em um teatro foi para trabalhar já como ator, em 1970. Meu pai queria que eu estudasse, tivesse uma profissão paralela ao teatro e argumentava: “O Renato Aragão é advogado e tem um emprego federal no Banco do Nordeste. Você precisa ter uma profissão, uma formação acadêmica, se quiser fazer esses seus dramazinhos, essas suas palhaçadas, essas suas brincadeiras”.
ML
Ele achava que isso era uma coisa menor...
RG
Creio que não. O que ele queria é que eu me conscientizasse de que esse artista que eu desejava ser precisava de uma base sólida de formação intelectual e talvez até de uma outra profissão. Meu pai queria que eu fosse advogado, mas, depois de deixar a escola formal fui estudar por conta própria, prestar exames supletivos de primeiro e segundos graus e ingressar na Universidade para iniciar os cursos de Letras e Comunicação Social. Durante todo esse processo, continuei no Teatro, mesmo lidando com um certo estranhamento dos meus pais em relação a essa atividade. Imagino que meus pais achassem um pouco estranhos aqueles amigos que eu levava pra minha casa, o pessoal de teatro dos anos 1970. Além do mais, eu convivia com gente muito mais velha do que eu, tanto no rádio quanto na televisão. Estreei com atores veteranos. Tive essa sorte, esse privilégio. No rádio, convivi com atores que vinham das décadas de 1930, 1940. Na Ceará Rádio Clube, havia uma senhora chamada Iracilda Gondim, funcionária da PRE-9 desde 1936. Contracenei com ela e também com Ivone Mary, atriz oriunda do teatro dos anos 1940, com Ângela Maria que nos anos 1930 tinha atuado no teatro. No radioteatro, trabalhei também com João Ramos, Laura Santos, Glice Sales, Pedro Américo, Djacir Oliveira, Gonzaga Vasconcelos, Miriam Silveira e José Humberto Cavalcante, dentre muitos outros. No elenco da peça em que estreei em 22 de março de 1970 estavam, por exemplo, Clóvis Matias e Rufino Gomes de Matos, veteranos das décadas de trinta e quarenta. E outros mais novos, como Antonieta Noronha, Zulene Martins, Edinardo Brasil e o próprio José Humberto Cavalcante.
M
Waldemar...
RG
Não. O Waldemar não estava nesse elenco. Nós só nos conhecemos dois anos depois, em 1972, quando fizemos “As Máscaras”, de Menotti Del Pichia, e ele se tornou, então, meu grande mestre de expressão vocal. No início de minha experiência como ator eu tive essa chance de conviver com gente do passado como Waldemar Garcia e Clóvis Matias. Essa convivência me encantou.
ML
Quem te permite entrar nesse universo, quem te dá a chave para entrar na rádio, na TV Ceará, é o Guilherme Neto. É isso?
RG
A chave em que sentido?
ML
Quem te autoriza a entrar.
RG
Não, pelo contrário. Ele é quem me desautoriza a entrar.
ML
Mas você tinha acesso por ser sobrinho do diretor da emissora. Não falo acesso no sentido de “vamos chamar esse menino para trabalhar porque ele é sobrinho do Guilherme”. Não. Eu imagino que deixaram você entrar nos estúdios por ser sobrinho do Guilherme.
RG
No início, talvez. Mas depois a minha entrada passou a ser interditada exatamente porque eu era sobrinho do Guilherme Neto. É preciso contar. O Guilherme Neto - seresteiro, mestre de gerações, diretor da PRE-9 e do Canal 2, autor da primeira telenovela do Ceará, jornalista, cronista, figura extraordinária que eu amo e que foi definitiva na minha vida em todos os sentidos – percebeu que eu era um devoto daquele ambiente. Veja: eu chegava lá nos estúdios, pela manhã, ainda fardado, gazeando aula. E o Guilherme falava com meu pai sobre essa minha presença constante. Os dois eram amicíssimos. O Guilherme sabia que naquele horário em que eu estava na TV, eu deveria estar no colégio. Então ele começou a se preocupar comigo a tal ponto que pediu para eu não ir mais e voltar à escola. Não falou diretamente comigo porque não ia se dirigir a um menino. Ele falava com meu pai e minha mãe. Como eu insisti, teimosamente continuei freqüentando os estúdios e meu tio chegou, então, a proibir a minha entrada no prédio da TV Ceará Canal 2. Portanto essa proibição atingia todas as coisas de que eu mais gostava, considerando que a PRE-9, o Canal 2 e os dois jornais, Correio do Ceará e O Unitário, funcionavam no mesmo prédio. Eu vivia por lá, xeretando e querendo saber do funcionamento das coisas. Eu era fascinado por esse mundo e fui proibido de entrar. Apanhei muito porque meu pai sabia que eu tentava burlar a vigilância do porteiro e - algumas vezes sim, algumas vezes não - entrava no prédio e era expulso já que existia a ordem expressa: “Esse menino é proibido de entrar aqui e se ele conseguir entrar, expulsem”. Muitas vezes pelo vidro que separava os estúdios e a cabine do suíte o próprio Guilherme Neto me via e me apontava chamando a atenção do assistente para a minha presença indevida. Aí o assistente se aproximava e dizia: “Olha, você vai ter de sair”. Eu saía chorando e quando meu pai, informado pelo Guilherme, descobria isso, batia em mim. E no que resultou? Eu fiquei mal com o Guilherme Neto. Reação de criança. Fiquei sem falar com ele uns sete anos mais ou menos. Porque eu apanhava por causa dele e achava que ele era contra mim quando na verdade a intenção do Guilherme era que eu estudasse. Anos depois - eu já adulto - ele mesmo me contou que nesse tempo dizia assim pro meu pai: “Almiro, esse menino não vai ganhar nada com esse negócio de querer ser de jornal, televisão e rádio. Isso não dá camisa a ninguém. O máximo onde ele pode chegar é ao lugar onde eu estou e o lugar onde eu estou, a direção de uma emissora, isso é bobagem. Se esse menino tem talento, deve se formar para ser muito mais do que eu. Não pode querer ficar aqui pretendendo ser ator porque os atores só ganham pequenos cachês”. Claro que em relação a uma criança faltou ao Guilherme, digamos, um pouco de pedagogia, não é? Talvez não devesse ter sido essa a forma de me persuadir, mas o que aconteceu foi isso e reagi a essa pressão ficando de mal com ele. Nas festas da família, eu pedia a bênção a todos os meus tios - e olha que eram dez – mas me negava a pedir a bênção a ele. E aí, tempos mais tarde, acontece uma coisa linda: quando eu completo 18 anos e já estava fazendo teatro e rádio desde os 14 mesmo contra a vontade do Guilherme Neto, ele me chama pra uma conversa na sua sala da TV Ceará. Eu tinha acabado de trabalhar como ator, dirigido pelo Ary Sherlock, no primeiro programa de transmissão em cores da televisão cearense, chamado “O Som, a Luz, as Cores e os Muitos Amores de Fortaleza”, levado ao ar em 26 de novembro de 1973. Um dos primeiros rostos da TV em cores do Ceará é o meu, de rapazinho, lá atrás, narrando um poema de João Guilherme da Silva Neto denominado “Arremedo de Poema Para Fortaleza”. Pois bem. O Guilherme sabia que eu estava fazendo novela de rádio e que havia participado do elenco desse programa. Então, no final do ano de 1973, ele me convoca e diz: “Bom, você fez em setembro 18 anos. Quando você era menor de idade, fiz toda uma campanha para afastá-lo dessa atividade de rádio e TV. Mas agora você é um homem e não vou ficar brigando com uma pessoa que quer ter uma profissão. Se você quer mesmo isso, eu lhe dou uma informação: vou ser diretor artístico de uma nova televisão, a TV Educativa Canal 5, que será inaugurada aqui em Fortaleza no próximo ano. Então você pode fazer um teste para tentar a vaga de locutor de cabine”. Houve o teste e fui aprovado. E em janeiro ou fevereiro de 1974, antes da inauguração da TV Educativa em 07 de março, eu já era o locutor. E isso me dá a oportunidade de um outro privilégio interessante: o de ser a primeira voz da Televisão Educativa do Estado do Ceará. Eu que gosto de ser o iniciador das coisas só não pude ser a primeira imagem porque a primeira imagem é a da coruja, símbolo, logomarca do Canal 5. Tu te lembras? É uma corujinha.
ML
Eu ainda não tinha nascido.
RG
Você ainda nem tinha nascido e eu já estava na cabine da TVE dizendo: Boa noite, senhoras e senhores. Está no ar, em caráter experimental, a Televisão Educativa do Estado do Ceará.
ML
Ricardo, se alguém for ouvir essa entrevista daqui a uns cinqüenta anos vai ficar se perguntando um pouco sobre esse quarteirão das comunicações. Fale um pouco desse local. Você é um ilustre fortalezense do bairro da Estância, não é?
RG
Sou. Do bairro que depois viria a ser o Dionísio Torres.
ML
Eu queria que você falasse um pouquinho dessa Fortaleza da sua infância. Como era sua rua, como era aquele sítio que hoje é uma área nobre da cidade?
RG
Eu nasci gêmeo, você sabe, não é? Eu era gêmeo. Uma dupla: Ricardo e Roberto. Nasci na Casa de Saúde Dr. César Cals, da Praça da Lagoinha, e fui levado para a casa da Rua Pinho Pessoa, 1244, hoje 1288. Meu pai havia comprado o terreno. Naquela época o lugar era um areal, próximo ao final da linha do ônibus Quitandinha. Existiam algumas construções e um grande coqueiral, na esquina da Rua Tibúrcio Cavalcante com a Avenida Antônio Sales, onde até hoje resistem duas caixas d’água e uma vila. Havia também ali, na rua Tibúrcio Cavalcante, uma outra vila, construída pelo Dionísio Torres para abrigar funcionários da TV Ceará. A cidade estava crescendo. O bairro nobre da cidade até então, no começo do século XX, era esse onde nós estamos, o Benfica, e depois a elite migrou para o Jacarecanga. O Dionísio Torres teve a visão de que nos anos 1950 e 1960 Fortaleza cresceria para os lados do rio Cocó. Saiu, então, comprando terrenos e um desses terrenos o meu pai comprou para fazer a casa. O Dionísio Torres doou aos Diários Associados o terreno para que fosse construída a sede da televisão emergente, nossa primeira emissora de televisão. Acredito que ele tinha consciência de que todos aqueles investimentos, aquelas ocupações, contribuiriam para a venda de imóveis, para a formação de um novo bairro, bairro que depois, muitos anos depois, passou a ter o seu nome: Dionísio Torres. Então, eu vivia ali. Perto da nossa casa existia uma pequena favela e também havia a Vila Zoraide, fim da linha dos ônibus Quitandinha e Pan-americano. E muitos terrenos baldios. Eu atravessava coqueirais para chegar à TV Ceará Canal 2 e à Ceará Rádio Clube. Havia também muitos campos de futebol, mas eu nunca joguei bola. Neste sentido, não fui um menino típico. Por exemplo, eu ia ao campo de futebol não para participar das partidas, mas para narrar o jogo. O microfone era uma lata. Eu colocava uma pedra dentro de uma latinha para fazer a voz vibrar e começava a descrever, como um locutor esportivo, as jogadas. Os meninos adoravam porque viravam astros do futebol de várzea, não é? E eu, com essa atitude, não me isolava deles. Nunca fui aquele menino isolado de alguém chamar pra brincar e eu me negar a ir por estar em casa lendo. Não. Eu fechava o livro e ia para a brincadeira. Mas não me comportava no código comum aos garotos da minha idade. E mesmo com o estabelecimento de outro código, eu não me fazia um apartado da turma. Inventava nela um lugar pra mim. Sempre inventei nos lugares um lugar pra mim. E assim eu fui convivendo com o pessoal das redondezas da casa dos meus pais. No entorno a nossa casa era considerada a de gente mais abastada, mais rica. E o futebol me fazia conviver com os vizinhos, digamos, mais pobres. Essa convivência foi fundamental pra minha formação. Nossa casa era rodeada por famílias migrantes do sertão e eu, então, ainda convivi com uma Fortaleza em que nos bairros persistiam resquícios da cultura popular. Tanto que uma das minhas primeiras atuações na vida é como gritador de quadrilha e padre nos casamentos matutos. Fui durante anos e anos da adolescência o organizador desses casamentos. Eu escrevia a cena do casamento, dirigia os ensaios. E nem havia ainda estreado no teatro propriamente profissional. Por muito tempo, guardei a batina que eu usava na época. Fazer o papel do padre nas quadrilhas era um compromisso anual tão sério que eu tinha mandado confeccionar uma batina. Porque às vezes eu participava de três ou quatro quadrilhas no período junino. A partir de 13 de junho, dia de Santo Antônio, até 29, dia de São Pedro, me convocavam para gritar as quadrilhas. Então eu convivi muito com gente de outra classe social e creio que isso foi determinante para que eu entendesse outras culturas, outras maneiras de ser e pudesse perceber as contradições sociais. A casa do meu pai foi reformada e virou uma mansão para os padrões em derredor. Não que ele fosse milionário, mas à medida que meu pai ia crescendo na sua carreira, fomos mudando de padrão. Nossa casa tinha carro na garagem, um jardim grande, um quintal imenso e os meus amigos da vizinhança eram pessoas da vila e o pessoal da favela, entendeu? Depois de sair de um colégio de status como o Christus, onde eu ainda criança fui ator, meus pais me transferiram para o Colégio Lourenço Filho e, posteriormente, para o Colégio Joaquim Albano, escola pública. Aí, então, é que meus amigos e as pretendentes a namorada passaram a ser pessoas de uma classe social que não era a minha. Meus colegas me olhavam assim, entre aspas, como o rico da turma. Além disso, eu era olhado como o excêntrico porque não bebia nas tertúlias. Os outros rapazes da minha idade estavam começando a beber e a fumar e eu não fumava nem bebia. Só na faixa dos 35 anos é que fui experimentar isso. Aliás, tudo meu é meio fora do tempo. Agora que a maioria parou de fumar, estou eu fumando. Agora que as pessoas não podem mais beber, eu me iniciei no uísque.
ML
Ricardo, nesses seus 40 anos de carreira e quase 55 de vida, a cidade se transformou profundamente. Fortaleza é uma cidade muito curiosa porque as pessoas aqui têm uma certa aversão à cidade. É muito comum você ouvir pessoas que moram aqui, mas que não gostam daqui. Você gosta de Fortaleza?
RG
Fortaleza está dentro de mim. É a minha estrutura. Às vezes eu me surpreendo pensando que na minha forma de pensar está Fortaleza. Mais do que ser de Fortaleza, eu sou Fortaleza. Essa cidade plana, quadriculada, apolínea e solar é virginiana. E, por ser virginiano, eu às vezes acho que Fortaleza é uma extensão minha ou que eu sou uma extensão dela. Exatamente por ter esse rigor é que o nosso urbanismo enseja transgressões e reinvenções. Eu fico me imaginando também assim, apolíneo e dionisíaco. Sou uma pessoa de pensamento crítico, dialético, mas ao mesmo tempo, me permito, como o Teatro Radical, ao devir, aos rizomas. Penso que só se pode improvisar, só se pode transgredir quando se tem um rigor estrutural, uma base. Isso se reflete no meu teatro e na maneira como eu escrevo, misturando memória, imaginação e pesquisa bibliográfica. E também se refletiu naquele rapaz de 20 anos que eu fui, construindo um museu de teatro para colocar meu olhar de mais jovem sobre os mais velhos e o olhar dos mais velhos sobre mim. Acho que esses encontros me estruturam. E isso tem a ver com esse meu ser de Fortaleza.
ML
Você é um pouco cidade.
RG
Sim. Eu gosto de ser a cidade, de saber da cidade. Durante um tempo, fui cronista diário da Rádio Universitária e em uma de minhas crônicas há uma frase assim: “Fortaleza é uma cidade para a qual a gente nunca pode voltar porque na volta a cidade já não é mais a mesma, transfigurada por uma voracidade quase suicida”. É doloroso o sujeito ir perdendo a idéia de pertença por notar que um prédio foi destruído ou uma rua mudou de nome. A gente fica querendo preservar os espaços, os nomes antigos das ruas porque aquelas referências fazem parte do nosso patrimônio afetivo. É preciso manter esse nosso sentimento de preservação de um tempo, ainda que esse tempo não seja o mais remoto, ainda que esse sentimento de preservação seja, pelo menos, o mínimo possível. Eu sou muito fortalezense. Gosto daqui, adoro Fortaleza, o mar, o sol. Agora, por exemplo, é tempo de chuva e quando está chovendo me dá uma tristeza. Talvez eu seja o único cearense que não acha que está bonito pra chover. Eu queria que chovesse só de noite. Quando chove durante o dia sinto falta do sol.
ML
É engraçado que você constrói a sua carreira, Ricardo, meio que rompendo uma trajetória singular da cultura cearense que é expulsar seus artistas ou ver seus artistas brilharem de longe, assistir ao brilho de longe. Você não. Você consolida uma carreira aqui, vira uma estrela aqui. E eu vou insistir nessa palavra estrela porque acredito que é possível ter um céu daqui, nosso. Você faz essa opção de ficar, mesmo tendo oportunidade de trabalhar fora, de conduzir essa carreira para fora ou de trabalhar lá fora morando aqui. Isso é uma atitude estética, política, ser um artista do Ceará, querer ser um artista do Ceará?
RG
Isso se transformou numa atitude política, embora eu, quando mais jovem, menino de 12, 13 anos, sonhasse com o que diz a música do Augusto Pontes e do Ednardo: “Vou voltar em vídeo tape e revistas super coloridas, pra menina meio distraída repetir a minha voz”. Eu tinha esse sonho de criança. Quando fiz 15 anos, o presente que pedi à minha mãe foi conhecer São Paulo e Rio, e ela me deu. Em julho de 1970 fui pela primeira vez. Aliás, numa circunstância linda. Viajei com as irmãs de Frei Tito que foram a São Paulo visitar o irmão na prisão. Eu não sabia, na época, das circunstâncias. Fomos de ônibus até São Paulo. Eu aos cuidados de Nildes e Nailde de Alencar Lima. Frei Tito, nesse ano, estava após as torturas no presídio Tiradentes. Mas eu não tinha informações de nada disso. Sou de uma geração que cresceu na ditadura militar. Eu era uma criança quando veio o golpe militar de 1964 e depois o recrudescimento da ditadura em 1969. Na escola, estudei OSPB - Organização Social e Política do Brasil - e Moral e Cívica, disciplinas criadas durante o regime dos generais. Como a televisão e os jornais estavam sob censura, só mais tarde vim descobrir que havia tortura de presos políticos no Brasil. Meu pai, por ser um homem de esquerda, tinha muito cuidado de não tratar desse assunto conosco, em família. Numa época de informantes disfarçados, talvez ele tivesse lá as suas precauções porque a gente poderia, por inadvertência, soltar uma informação que comprometesse alguma coisa. E eu fui pra São Paulo com as irmãs do Frei Tito sem saber da razão da viagem delas. Quatro anos após esta viagem de 1970 é que descobri. Eu estava terminando o curso de francês da Casa de Cultura Francesa da Universidade Federal do Ceará e minha mãe me transmite um recado da Dona Nailde, irmã de Frei Tito e nossa vizinha: “A Nailde quer que você vá à casa dela para traduzir uns papéis que ela recebeu da França”. Eu tinha, então, 19 anos. Fui pra lá e comecei a ler e dizer pra família ali reunida o que estava escrito em recortes de jornais, depoimentos e cartas. Era todo um acervo sobre os últimos anos de vida do Frei Tito. Eu é que dei a uma parte da família Alencar Lima a notícia sobre essa fase. Aquele é um momento de descoberta extraordinário pra mim porque ali me veio a consciência política de toda a minha infância e adolescência sob censura, a minha constatação crítica sobre a escola que não me falava sobre os problemas do Brasil, a revelação de que havia sido feita uma lavagem cerebral com os jovens em relação ao golpe de 1964. Os recortes eram um testemunho sobre o movimento político de esquerda no Brasil. Os padres franceses tinham enviado para a família Alencar Lima aquelas informações e coube a mim transmitir. Mais de dez anos depois, já em 1987, escrevi um texto transformando parte desses dados em uma peça de teatro chamada “Frei Tito: Vida, Paixão e Morte” que inclusive foi premiada pela UNESCO. Mas voltando ao que você perguntou: no começo da minha adolescência, eu pensei em ir e até fui ao Rio, a São Paulo, mas não pra ficar morando. Fui pra ver e sentir.
ML
Quem era o espelho?
RG
Quem era o espelho?
ML
Em quem você se via?
RG
Olha, eu fui a esses lugares e quando cheguei lá eu me disse: “Não, o meu lugar não é aqui”. Daí, comecei a me inquietar e voltei dizendo a mim mesmo: “Se houver algum outro plano pra mim, que esse novo plano vá me buscar no Ceará”. Então, fiz minha carreira assim: viajei, mas sem deixar de manter minha base em Fortaleza. Ainda nos anos 1970 andei pelo Brasil e depois pelo mundo afora e vi que havia respeitabilidade em relação ao teatro que nós fazíamos. Como, por exemplo, em relação a uma peça daqui, “O Morro do Ouro”, que em 1976 fizemos em São Paulo sob a direção do Haroldo Serra. A vida foi me ensinando que era possível falar para o Brasil e para o mundo sendo quem eu sou e estando onde eu estava. E aí esse estar no Ceará, ser do Ceará, virou uma atitude política.
ML
E quem era o seu espelho? Vou insistir: quem era sua meta? Quem você cobiçava ser nesse sonho de menino?
RG
Eu queria ser uma referência nacional e achava que pra isso precisaria estar no Rio de Janeiro ou em São Paulo. Talvez pelo meu fascínio infantil quanto à televisão. Eu sonhava com a TV, mas - veja - antes mesmo de completar 20 anos, já me dispus a dirigir pela primeira vez uma peça de teatro. Em 1973 já me aventurava na direção teatral. Então, eu sempre me pensei assim integrado a muitas atividades. Desde cedo me exercitei como dramaturgo, poeta, contista, diretor, ator, cenógrafo, iluminador, produtor, jornalista. Com vinte anos de idade assumi uma coluna de jornal pra escrever sobre teatro. Enfim, sempre fui muito precoce nisso. Ainda na década de 1970, depois do fato de me saber um pesquisador e um historiador do teatro da minha cidade, eu achava que indo embora daqui eu iria embora de toda essa história, entende? Achava que se eu fosse embora de vez levaria essa história para um lugar que não era o dela. Pra mim, outro lugar não era a geografia da minha história. Mas, mesmo me fixando aqui, comecei a viajar a partir de 1982 para participar de festivais internacionais. Estive, por exemplo, na Itália, Espanha, Alemanha e México apresentando peça e dando aula nos Centros de Estudos Brasileiros mantidos pelas Embaixadas do Brasil. Fiz também apresentações em Portugal, Cuba, Costa Rica, Nicarágua, Tunísia e em Angola. Na França proferi palestra em francês na Universidade Paris VII. Era uma conferência sobre o Nordeste e sua cultura popular, realizada em 1985. Fui convidado pelo Jean Duvigneau para falar como palestrante. Eu já era professor do Curso de Arte Dramática da Universidade Federal do Ceará desde os 24 anos de idade, sem ter sido aluno desse curso. Foi sempre assim a minha trajetória. Não é à toa que ela não é, do ponto de vista acadêmico, toda encaixada conforme o esperado.
ML
Ricardo, você fala, então, de um determinado momento da sua vida em que você entende que poderia falar ao Brasil e ao mundo estando no Ceará.
RG
Estar no Ceará já representava pra mim alguma coisa nova.
ML
Então, eu queria falar um pouco da crueldade que envolve essa decisão. Tem uma passagem muito bonita da sua carreira que é quando você encontra Denise Stoklos. Estão os dois, a Denise Stoklos e você, em início de carreira, dividindo o mesmo festival em Cuba. Acontece que a Denise ocupou uma história no teatro brasileiro que infelizmente você não ocupou. A Denise saiu do Paraná para residir em São Paulo e você não saiu do seu Ceará. Isso é cruel, Ricardo? Você vê isso como crueldade? O fato de o Brasil ser São Paulo e Rio de Janeiro? Isso é cruel?
RG
Crudelíssimo e não só comigo. Crudelíssimo com os jornalistas, com os artistas.
ML
Para a cultura.
RG
Para a cultura, para as pessoas comuns, para o povo. É cruel que um país se desconheça tanto e seja de forma tão preconceituosa centralizado em um só lugar. É cruel que os meios de produção e de divulgação estejam concentrados em um só eixo e que isso impeça a aparição de novos talentos. É um atraso para o país. Crueldade é o país não se conhecer e a gente precisar da mediação de um determinado lugar, de um determinado público, de um determinado esquema empresarial e de mídia para poder ter um reconhecimento. Mas acho que essa realidade já está aos poucos se transformando. A internet dá um golpe nisso, não é? Esse modelo centralizador, hegemônico, já está começando a implodir. Não vai se perpetuar esse império. E esse rompimento depende em certa medida de cada um de nós. Eu, por exemplo, poderia hoje estar muito mais na Internet. É que às vezes me falta também vocação para ser esse produtor e administrar o projeto que tenho. Veja o caso do meu acervo. Você sabe que eu preservo um acervo significativo sobre a história do teatro do Brasil. Meu plano é que esse acervo seja digitalizado. Já fizemos alguns projetos para isso, mas não foram aprovados ainda. É um processo político que a gente precisa enfrentar e eu tenho medo de não estar aqui pra ver isso se realizar. Eu preciso poder preservar não somente a minha história pessoal, mas também a história do teatro que eu carrego. Às vezes me sinto muito angustiado porque não estou interessado apenas em administrar a minha carreira. Além do compromisso em manter a minha teatrografia, me sinto compromissado com a teatrografia dos outros. Porque entendo que a minha vida está entrelaçada a centenas de vidas da história do teatro do Brasil, da história do meu povo, do meu tempo. Eu avoquei a mim a idéia de guardião desse acervo e preciso deixar isso mais organizado e ainda mais acessível. Ter esse material todo comigo só vai deixar de ser apenas um prazer meu, pessoal ou de círculo considerável de pessoas orientadas por mim, quando esse patrimônio for de domínio público pra que todos possam ter cada vez mais um acesso maior às informações.
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