Entrevista com Ricardo Guilherme, realizada em 28 de abril de 2013 por Suzy Élida Lins de Almeida como parte da pesquisa para sua tese Dialogismos e Processos de Autoformação em Teatro: o Elogio da Experiência, defendida no Doutorado em Educação Brasileira da Universidade Federal do Ceará, sob a orientação da Professora Doutora Ângela Linhares.
– Escrever pra mim é me apoderar de algo que eu sei e de algo que eu ainda não sei. Esse algo que eu sei vai provocando algo que eu não sei, alguma coisa que vai vir à tona no processo de escrita e que me fará inclusive reelaborar esse processo do que sei. Porque a escrita acaba sendo sempre um processo de reelaboração, de reinvenção. Escrever, portanto, não me parece ser simplesmente um processo de apropriação, como se eu abrisse uma gaveta e fosse buscar o que já está colocado, mas sim também um processo de descoberta e redescoberta. Ao abrir a gaveta em busca do conhecimento já posto, há não somente a seleção do vai sair da tal gaveta, mas também a qualificação mesmo da coisa em si que é selecionada e que ao ser selecionada se transforma pelo ato de se tentar apreender o seu sentido. Ou seja, no ato de apreender há um aprender, um processo de resignificação do que sei e igualmente se dá um acesso ao que nem sei que sei ou que nem sei mesmo. O estar escrevendo é que vai me permitir saber ou ir sabendo, no gerúndio. Mas há outro encanto no ato de escrever e esse outro fascínio é que escrever me dá uma sensação de totalidade, na medida em que eu vou processando o que sei com o que estou sabendo no presente e com o que poderei saber no futuro. A escrita mistura tudo isso com a invenção, conjugando imaginação e pesquisa, e ao me apoderar dessa conjugação eu passo a ter uma ideia de integralidade, de inteireza sobre alguma coisa. Além do mais, esse me apossar de alguma coisa faz com que eu tenha uma impressão de imortalidade, quando ao me saber escrevendo, eu me sei imortal no sentido de que aquilo que sei não vai se perder, porque vai poder ser lido e relido por alguém, vai poder, enfim, ser reacessado e ressignificado por alguém. Escrever me assegura uma certa fuga da fugacidade, uma fuga do que é fugaz, fuga do que é efêmero e perecível. Em relação à operacionalidade do meu trabalho como escritor, digo sempre que eu escrevo acionando memória, pesquisa e imaginação. Não escrevo como quem testemunha e depõe. Não me considero um memorialista, pelo menos quando estou escrevendo dramaturgia, poesia, conto etc. Escrevo, sim, com sentimentos mas com sentimentos que até um pouco antes do ato da escrita eu não sabia que tinha, sentimentos que nem sei que tenho e que vão vindo à proporção em que uma palavra vai acionando mecanismos de lembrança. Então, eu vou articulando a esse processo de tocar em determinadas lembranças uma tarefa intelectual de reflexão, de pesquisa. Eu escrevo lendo e relendo outros autores, pesquisando palavras, semânticas, etimologias, sendo advogado do diabo de mim mesmo. E ser advogado do diabo de mim mesmo é não acreditar nem naquilo que eu tenho certeza. Eu duvido do conhecimento que tenho, por exemplo, sobre a acepção de uma determinada palavra e me desafio a checar se o que eu cristalizei como certo procede ou não; se ao que eu suponho saber cabem outras visões de mundo. Assim eu me disponho a procurar outras visões de mundo sobre aquilo que sei, para reaprender aquilo que sei ou para desaprender o que sei, e para baseado no que eu sei construir novos sentidos e saberes. Por isso é que escrevo consultando vários livros, já que às vezes uma dúvida me leva a outra dúvida e a muitas outras consultas e análises. Porque entendo a escrita não como o processo daquilo que eu sei, mas sim como o processo daquilo que eu não sei e que só vou sabendo se escrevo e enquanto escrevo. Eu só sei do que sei depois que escrevo. A escrita é pra mim, portanto, um mecanismo de estudo, um aprendizado, uma apreensão do que eu sei, um reconhecimento do meu conhecimento, mas também uma operação de fazer com que esse conhecimento se deixe perpassar por outros conhecimentos, para que então se estabeleça uma terceira via de saberes, resultante do amálgama daquilo que eu sabia antes de escrever com aquilo que eu fui sabendo enquanto escrevia e com aquilo que eu sei depois que escrevi.
*Mas há ainda nesse seu processo a ação da sua imaginação.
– Sim, um processo de pesquisa e imaginação capaz de me estimular a relacionar uma coisa que li com uma outra de que lembrei ou que imaginei. Começo, então, a criar relações significativas. Acho que a inteligência e a imaginação são acionadas pelas interrelações de significados que a gente faz de um conhecimento. Não se trata de ir acumulando conhecimentos, como se fôssemos um armário. Não. As pessoas estão sempre fazendo relações entre os saberes e se colocando sentimentalmente, permeando os conhecimentos com as emoções, com os filtros da subjetividade. A gente separa razão e emoção apenas didaticamente, apenas esquematicamente, assim como a gente separa memória e imaginação também só esquematicamente. Ora, a memória é sempre perpassada de subjetividade e até de imaginação. Como já disse certa vez o Nelson Rodrigues, a memória pode ser inclusive alucinatória. A nossa memória edita histórias, edita sentidos. Memória, afinal, é sempre um discurso do presente sobre o passado.
*Como você escolhe temas e com quem você dialoga na pesquisa?
– Em geral meus interlocutores são os filósofos, os antropólogos, os historiadores, os sociólogos, os psicanalistas e sobretudo os artistas quando me estimulam à arte e ao processo criativo. Sim, porque há uma arte que nos mobiliza a também fazer arte, a também criar. Já os antropólogos me interessam porque tocam nos mitos e com essas questões de antropologia cultural subsidiam o meu olhar que quer ser sempre um olhar “macro”, transhistórico, transcultural. Então eu vou procurar na antropologia as culturalidades e principalmente as transculturalidades. Isso me interessa: as mentalidades que vão se transfigurando na medida em que o tempo passa, na medida em que novas gerações vão surgindo; os resquícios que ficam de uma geração na outra; os significados variados que diferentes gerações dão a um determinado fenômeno. A história me coloca na perspectiva dos acontecimentos, numa cronologia, e me situa no tempo, por assim dizer datável e datado, enquanto a filosofia me instiga a sair desse plano, digamos, histórico-objetivo, e ir pro plano do ontológico, do que significa pro Homem viver a experiência humana. E não me refiro aqui a consultar necessariamente os filósofos, mas sim ao fato de às vezes estar lendo um livro que nem é de filosofia e poder repensar aquela leitura sob um viés filosófico.
*Como é a sua construção dramatúrgica?
- Seja em conto, crônica, artigo, ensaios, qualquer tipo de criação, eu encaro meu processo de escrita como poesia e poesia pra mim é um não ter palavras para dizer de algo e então precisar buscar palavras para exprimir o inexprimível. Mas especificamente em relação à dramaturgia, eu procuro não criar personagens delimitados por um universo vocabular nem por um universo psicológico. É o que eu chamo de “dramaturgia- poeta”, em contraposição à “dramaturgia-repórter” em que o dramaturgo transcreve o que ouviu e dota os seus personagens de verossimilhança e de credibilidade vocabular. Eu defendo pro dramaturgo uma liberdade criativa, uma arbitrariedade de poeta para criar os chamados personagens multidimensionais ou onidimensionais que podem tudo porque são suspensões do real e não necessariamente o real. Personagens multi ou onidimensionais são, enfim, as condensações de todas as coisas que o dramaturgo-poeta quiser, na sua invenção, atribuir a eles.
*Nas peças 68.com.br e Tempo temporão é assim a sua criação?
- Quando em 68.com.br, por exemplo, eu crio a fala de uma determinada personagem, não me pergunto se é crível ou não aquela tal personagem ter absoluta compatibilidade vocabular com seu similar ou duplo na realidade extra-cena. Eu me proponho a criar uma personagem que temha uma especificidade inventada, que seja uma espécie de alavanca para fazer vir à tona uma totalidade de mentalidades, de pensamentos. O que me rege ao criar personagens não é a lógica psicológica, a psico-Lógica, nem a cultura como imitação verossimilhante do real. Pretendo que meus personagens sejam polifônicos e polissêmicos, e não criaturas críveis que eu poderia tirar do palco e colocar na vida real. Meus personagens só existem na arbitrariedade do palco. E eu os construo como se construísse um mito, um espelho que rebate todas as luzes. Então me permito, por exemplo, colocar em um personagem uma linguagem que não é só dele, que é de uma mentalidade de muitos, mentalidade polifônica que absorve várias vozes.
*Que vozes são essas?
- Vozes de um tempo que eu como dramaturgo acho que estou filtrando e vou misturando, vozes inventadas. Porque o que a minha dramaturgia faz não é tão-somente uma edição de várias vozes, mas também uma invenção de várias vozes, uma poetização sobre o que existiu e sobre o que nem existiu. Há no dramaturgo uma dimensão de repórter, mas a sua porção/função poeta transcende a tarefa da reportagem e ambiciona criar uma dramaturgia que venha a reeditar todas as possibilidades de vozes e criar uma outra voz: a voz das mentalidades de um determinado tempo mas também a repercussão de outros tempos naquele determinado tempo. Por exemplo, a Menina e a Velha da peça Tempo Temporão não são apenas uma menina e uma velha circunscritas a um universo pequeno: uma casinha específica, numa rede específica, de uma cultura ou de um meio ambiente específico, datado. Eu, como autor dessa dramaturgia-poeta, dou a elas uma dimensão rapsódica, multidimensional, capaz de juntar todos os tempos e com essa junção criar um terceiro tempo.
*Como essa sua dramaturgia dialoga com a encenação? Há o texto que o autor escreve, mas há também aquele mesmo texto interpretado por outros artistas, o diretor, os atores, o iluminador etc. Em que medida, no processo de encenação, se dá esse processo de você, escritor, com os seus encenadores?
- A escrita é um processo solitário. Sou eu com os livros e com as minhas pesquisas de filmes, de áudio, imagens etc. Depois, durante o trabalho da encenação, ai sim, começam as relações interpessoais que pra mim são pedagogizantes, na medida em que me permitem descobrir o que outras pessoas pensam sobre aquela coisa que escrevi. O que antes era pesquisa individual vira um diálogo interpessoal, uma partilha entre pessoas: os atores, os diretores, os assistentes de direção etc. Ou - quando sou eu o diretor das minhas peças – o ato de encenar faz eu mesmo ficar diante de mim, revendo o texto e sondando a viabilidade de transformar em teatro aquilo que antes era só literatura dramática. Ver o que pensei e escrevi assumido pelo corpo de alguém ou inscrito no meu próprio corpo como ator se impõe, então, como um outro desafio. Porque o corpo pensa, o corpo me dá “insights”, me dá indícios, indicações criativas que transcendem a palavra escrita. Dirigir meus textos me proporciona esse encontro bidimensional, daquele que escreve com aquele que encena. Mesmo quando, no meu caso, escritor e encenador são a mesma pessoa, o processo de encenação me transfigura, me faz ser o outro que encena meu texto porque encenar constitui uma outra criação. Eu estou ali dirigindo uma peça minha, mas meu compromisso não se limita ao texto e sim ao contexto, já que a encenação é uma outra obra de arte, um novo aprendizado meu sobre aquilo que escrevi. O processo de análise de texto – análise que inclui intervenções intelectuais e exercícios de soluções cênicas – é fruto da interlocução com os atores e os demais membros da equipe. Do mesmo modo que eu como dramaturgo e diretor afeto os atores, os atores me afetam, inclusive às vezes até como escritor, pois além de redimensionarem com a fala deles o sentido do texto escrito, os atores podem me fazer mudar determinadas coisas textuais para atender algumas demandas. Ou seja: o processo criativo da escrita literária sempre se redimensiona no processo da escrita cênica. Mesmo quando o dramaturgo é o encenador. E se o encenador não for o autor do texto, então esse redimensionamento pode até se apresentar em cena de forma diametralmente oposta ao que o dramaturgo pressupôs. Eu, como escritor e encenador, sei que mesmo uma obra escrita para teatro não é teatro; é literatura. O fenômeno do teatro só se instala quando o ator absorve o texto e vira o autor do texto, não no sentido de que o ator vá recriar o texto, mas no sentido de que a intermediação feita pela sua representação do texto transfigura de forma autoral o texto. Nessa compreensão do fenômeno teatral, todo ator é, então, autor do texto que diz em cena, na medida em que empresta a esse texto uma inflexão, um ritmo, uma dicção, uma respiração, uma emissão com pausas e impulsos gestuais, corporais e emocionais que vão, portanto, criando sentidos a um conjunto de palavras que o escritor concebeu e que o ator transforma em fala. A dramaturgia, pro acontecimento da cena, é uma obra de arte, mas arte-meio, literatura-meio.
*Quando, nessa transposição de um suporte literário para um suporte cênico, você se dissolve? Chega um momento no processo criativo da cena que como escritor você desaparece e então aparece um outro Ricardo que é só o ator-encenador ?
– Estando eu em cena ou não, minha interlocução com as pessoas que estão no processo cênico comigo me leva sempre a ser eu em relação com o outro e esse ser com os outros me leva a ser outro, um outro Ricardo Guilherme possível, pactuado pela interrelação que se estabelece. Então, faz parte desse pacto compreender que para o outro ocupar um espaço, eu não posso estar no mesmo espaço dele. É preciso que exista um diálogo e o que resulta do meu diálogo com o outro é um terceiro Ricardo, o Ricardo possível.
*Quem é o Ricardo possível?
– O Ricardo possível é o Ricardo da interação, o que se deixou penetrar pelas ideias do outro, pela ponderação do outro, pelas limitações ou delimitações do outro, seja esse outro o ator, o diretor, o assistente de direção etc.
*Há nesse pacto um componente que é da ordem dos afetos, do amor mesmo entre as pessoas que fazem parte da equipe de criação?
– Sim, amor no sentido amplo da palavra, se a gente compreende amor como essa disposição pra aprender com o outro e não se impor ao outro de forma autoritária sem perceber que há na interrelação alguns limites e regras. Se há um outro no processo de criação, eu tenho que me relacionar com esse outro, não a ponto de me fundir a ele ou de querer que ele se confunda comigo, mas compreendendo que, se estamos em parceria, um não pode independer do outro. A relação exige que cada um de nós seja um ser societário, capaz de fazer pactos pra poder continuar existindo e coexistindo.
*Mas especificamente no seu trabalho de diretor com os atores, como essa relação acontece?
- No processo de criação, os corpos na cena são corpos pensantes, corpos condicionados ou que vão se condicionando com os treinamentos e que chegam em determinados estágios. Em 68.com.br, por exemplo, os corpos dos atores foram adquirindo determinados tônus físicos e de significado. Na estréia já não eram os mesmos do primeiro ensaio e mesmo depois da estréia foram se moldando até o final da temporada, como resultado não só da condição física, específica de cada um, mas também como conseqüência do fato de corpo e pensamento estarem juntos, o tempo todo interligados, integrados. Portanto, o ator no processo dá a sua contribuição que às vezes pode nem ser verbalizada, mas sim uma contribuição expressada corporalmente. Mesmo quando o gesto não brota de uma espontaneidade e é proposto em decorrência de um estudo, uma análise prévia, o fato de ser um gesto desenhado pelo corpo de uma determinada pessoa já implica uma especificidade, digamos, autoral. Tanto que se nós substituirmos qualquer um dos atores, o substituto - ainda que repita o mesmo gesto do seu antecessor - não dará a esse gesto a idêntica configuração. Será sempre aquele gesto, mas noutro corpo, noutra formatação plástica, dramática, em dinâmica com outra emissão de voz e outras compleições de gestualidade. A ação física poderá ser repetida pelo substituto, mas essa repetição não será tão-somente uma mera apropriação, desprovida de subjetividade. Haverá sempre um componente que qualifica com significação o que estiver sendo feito. Mesmo numa direção impositiva na qual o ator apenas “obedece” ordens, o resultado não denota uma subserviência, uma submissão porque, mesmo sob o comando do diretor, a ação independe do diretor no sentido que a ação é do corpo do ator, animada pela voz dele, pela compreensão que ele teve daquilo que o diretor pediu. Persiste sempre o filtro da percepção e da execução do ator. Este é um dos motivos pelos quais eu procuro ter uma relação pessoal diferenciada com cada ator, tentando compreender a especificidade de cada um no modo de lidar com o trabalho em cena. Tento me relacionar com aquele ator, naquelas circunstâncias, ouvir as suas demandas e ter a consciência de que a resposta dele ao que eu, como diretor, solicitar não pode ter como parâmetro a exatidão daquilo que imaginei porque a execução do meu pedido será sempre mediada pelo que ele compreendeu e pelo que sua atuação pessoal for capaz de expressar.
*O que é pra você o corpo do ator? Como você pensa o corpo do ator?
– Além de ser uma forma e de poder ter várias formas, o corpo do ator é pensamento, expressa um pensar. Então, pra mim corpo é concretude, mas também a abstração. Corpo pensa e me faz pensar porque significa coisas, traça dramaturgia. Por mais que o dramaturgo tenha escrito palavras, essas palavras são modificadas pelo filtro do corpo do ator, ainda que sejam ditas no palco literalmente conforme o escritor escreveu. O texto dito em cena não é o texto que o autor escreve; é o texto do ator, perpassado dos significados expressos pela sua voz, sua inflexão, suas pausas etc.
*Como isso se aplica, por exemplo, na sua vivência com as peças 68.com.br e Tempo Temporão ?
– Em 68.com.br os atores, pelas idades, não tinham nenhuma relação vivencial com o ano abordado na peça, 1968. Cronologicamente, a maioria do elenco (Eugênia Siebra, Ghil Brandão e Suzy Élida ) vinha de uma outra geração e me parece que a sua relação com os assuntos tratados em 68.com.br era mais puramente intelectual, crítica, no sentido de tentar dar um novo encaminhamento às análises que já tinham sido feitas sobre a contribuição comportamental da vanguarda de esquerda, nos anos 1960, 1970. Já em Tempo Temporão havia uma intimidade maior das atrizes com o tema, uma certa identidade com a temática sentimental da peça, ao abordar histórias do sertão, figuras da cultura popular. Na época da montagem, início do século XXI, as duas atrizes – oriundas de famílias pobres ou de classe média da periferia de Fortaleza - estavam se consolidando como mestrandas, e a peça, pelo seu linguajar, por envolver memória de afetos no âmbito familiar, fez com que as intérpretes da Avó e da Neta (Edneia Gonçalves e Suzy Élida Lins) fossem se reencontrando com consigo mesmas, com seus guardados sentimentos, suas umbilicais afetividades. Com 68.com.br havia um envolvimento mais racional; com Tempo Temporão, um viés mais emocional. Ocorre, porém, que embora Tempo Temporão permitisse um vínculo mais afetuoso com as ideias, o corpo de cada uma das atrizes não era um corpo de reprodução do cotidiano vivido por elas na infância nem um corpo especialmente moldado pelas tradições populares citadas no texto. O corpo que está em Tempo Temporão é híbrido: nos gestos de uma cultura popular tradicional nordestina - precisamente cearense - mas também referenciado no código de quem tem formação teatral, condicionamentos de expressão cênica, resíduos de treinamentos em exercício de palco, guiados pela idéia de polaridades corporais que experimentamos a partir de estudos sobre a antropologia teatral, de Eugênio Barba. Em 68.com.br pesquisamos o referencial de gestos codificados nos anos 1960-1970 e em Tempo Temporão nos servimos muito dos livros de Câmara Cascudo, sobretudo Anúbis, Rede de Dormir e História dos Nossos Gestos. Anubis trata do mito da morte; Rede de Dormir, da presença da rede no universo nordestino arquetípico. E História dos Nossos Gestos descreve a gestualidade em geral, com um olhar de trans-historicidade que nos ensinou a ver o homem nordestino delimitado não apenas por suas circunstâncias históricas e geográficas mas perpassado de universalidades. Neste livro a gente descobre que um determinado gesto tido como específico de uma determinada cultura é na verdade uma repercussão e ressignificação de um gesto que a Grécia Antiga e outros povos antes de Cristo já faziam. Culturas várias se apropriaram de um dado gesto e ressignificaram esse gesto ao longo do tempo. Essa noção de transculturalidade sempre esteve muito presente em nossos estudos.
*E quanto à peça Meire Love o que você poderia dizer? O texto foi escrito por mim, em um processo de interlocução nosso.
– No processo de interlocução para a criação de Meire Love o texto teve vários tratamentos, com discussões sobre a dramaturgia. Depois com você, a autora, e com o diretor Yuri Yamamoto, a interlocução prosseguiu quanto à montagem cênica. Estive, portanto, do processo de escrita à encenação, umbilicalmente ligado à peça Meire Love. Apesar de ser um texto alusivo ao mundo praiano - já que as personagens são meninas fortalezenses, formadas na vida urbana de uma cidade grande, marítima - a peça, afora as citações geográficas, pontuais, citadinas, faz alusões a um mundo sertanejo. Há no ambiente da praia ecos do sertão, resíduos de uma migração que Fortaleza conheceu e ainda conhece. E eu acho que esses resquícios de sertão ecoam como imagens arquetípicas inclusive na alma da dramaturga, filha de uma praiana lá de Paraipaba, e menina criada na praia do Pirambu. Entretanto, esses dados transcendem a sua história pessoal de vida e apontam para a história da nossa Fortaleza, cidade de praia povoada por imigrantes do sertão. E esses resgates de ancestralidade sertaneja repercutem na escrita de Meire Love. Há, por exemplo, na peça uma referência ao boi. E o mais condizente seria pra uma certa lógica de senso comum que uma personagem de um universo tão praiano não se referisse a um boi de bumba-meu-boi. Seus mitos deveriam, segundo esse raciocínio, ser relacionados ao mar. No entanto, nossa interlocução se conscientizou de que deveria mesmo haver no texto repercussões do âmbito do sertão no âmbito do mar. Criou-se, então, um sertão-mar ou um mar-sertão, uma mentalidade em que pré-adolescentes repercutem mentalidades muito anteriores a elas. Não obstante o fato de as personagens de Meire Love estarem inseridas em um espaço-tempo atual, elas têm reflexos do passado. Neste sentido, então, são meninas velhas porque citam costumes, folguedos de um sertão mítico que a cultura popular em cada apropriação de uma geração para outra vai ressignificando, com adaptações ou modificações na tradição. Em Meire Love as meninas têm essa velhice de um sertão que elas nem viveram cujas histórias foram repassadas por filtros da transmissão oral ou vivencial. Outra reflexão que se poderia fazer em relação à biografia das personagens é a de que as Meires da peça são filhas de mães sem marido, meninas sem pai que projetam a figura paterna nos seus parceiros eventuais da prostituição. São crianças que não tiveram experiência com o masculino paternal, afetuoso, filhas de abusos sexuais ou de relações de afeto furtivas. Figuras sem família, imersas na marginalidade das ruas, são recorrências de sua escrita como autora de teatro. Em Iracema via Iracema - texto que também resultou de uma interlocução que tivemos - há uma mulher suburbana que procura pela mãe e pede ajuda a uma estação de rádio para encontrá-la. E em outro texto seu, Nem e o Bando, meninos também sem família convivem na rua, em rituais de afirmação da masculinidade. É recorrente na sua dramaturgia esse tentar encontrar fora ou dentro de si ecos de um passado sertanejo perdido, rastros de uma cultura que já não se domina, mas que ainda subjaz.
*Houve a nossa interlocução para a experiência de escrever Meire Love e depois uma outra também comigo e com o Yuri Yamamoto para a encenação da peça. Você poderia falar agora sobre a ideia de criar um diálogo entre o Teatro Radical e a estética do Grupo Bagaceira.
- Imaginamos uma relação da estética do Yuri Yamamoto com a ideia do átomo, da repetição criativa presente no Teatro Radical. Ele propôs como objetos de cena os sacos plásticos e eu sugeri, então, que toda a encenação fosse feita a partir do ato de encher de ar aqueles sacos e fazer o ar escapar. Combinamos de traçar todas as metáforas da encenação por esse dotar e expulsar de ar, como pulmões plenos de oxigênio e logo esvaziados, numa alusão metafórica aos sonhos e à frustração dos sonhos daquelas meninas que vivem nas ruas situações de exploração sexual. Daí, a polaridade: anseio de felicidade em contraste com a crueldade de quem sofre por ter uma infância estuprada; confrontos da realidade com a quimera; contraposição entre a Meire que almeja uma relação amorosa e a Meire que se frustra nesse desejo de afeto. Essa Meire que sofre por não ter o amor de um estrangeiro, repete, em certa percepção, o mito romântico da Iracema que se separa do guerreiro branco. Do ponto de vista da encenação, criamos em Meire Love – como quer o Teatro Radical - um átomo cênico, de ações em oposição, no caso o soprar e o esvaziar do sopro nos sacos de plástico. E optamos em evidenciar a ambigüidade sexual na interpretação e nos figurinos, como se sempre estivessem presentes na cena não somente as Meires mas também seus opositores, os machos que usam sexualmente aquelas meninas. Adotarmos, então, um tom épico em que não houvesse a reprodução do maneirismo das meninas, com atores-narradores que com o mínimo de gestos, fossem informando pelos diálogos as situações dramáticas sem reproduzi-las em composições cênicas. Decidimos que os locais das ações, como esquinas e calçadão da praia, não seriam mostrados mas apenas indiciados pelo diálogo dos personagens. E os atores – as figuras de paletó, calça e sapato de homem- deveriam se deixar sombrear por uma feminilidade oriunda das falas. Meire Love acabou formando, como realmente queríamos, uma simbiose da estética do Grupo Bagaceira com o Teatro Radical, mas o Yuri Yamamoto não enveredou pelo seu modo habitual de plasticidade; não repetiu sua peculiar artesania, na qual o figurino e os adereços típicos de figura do desenho animado se misturam com a feição humana. Essa forma de desenhar a cena está em Lesados e em Giz, onde há corpos desenhados, fictícios e corpos reais, biológicos, um completando ou complementando o outro. Em Meire Love a sua já consagrada estética se desnuda e possivelmente tocado pelo Teatro Radical o Yuri propõe algo mais despojado – apenas o paletó e o top das meninas – para criar um corpo, por assim dizer, híbrido masculino e feminino, com forma de macho e uma alma de fêmea. Essa solução de ambigüidade das figuras em cena foi uma das maneiras encontradas para corresponder à explicitação das contradições que o Teatro Radical propõe.
*Você, então, acha Meire Love uma encenação que faz a síntese radical?
– Eu considero Meire Love um dos espetáculos radicais. Durante toda essa peça há uma ação fundamental que se repete e que a cada repetição ganha pequenas nuanças, trabalhando com o minimalismo dialético, idéia tão cara ao nosso Teatro Radical.
*O primeiro artigo que você escreveu sobre a radicalidade vem da década 1980, mas outros foram escritos nas décadas seguintes. Qual desses escritos você destacaria como norteador do seu trabalho com os atores em Meire Love ?
– São vários os artigos acerca do Teatro Radical. O primeiro é de 1988. Depois, houve os de 1991, 2001 e outros mais. À época do primeiro artigo o Radical ainda não havia produzido nenhuma peça. Era a explanação da ideia, uma proposição, um manifesto em um contexto de reflexão, de princípios gerais, de análise da conjuntura teatral, sem a prática em si. Só em 1990 surgiram os primeiros espetáculos radicais e com eles as reflexões feitas a partir de experiências e aplicações metodológicas concretas. Com os atores de Meire Love (Rafael Martins, Rogério Mesquita e Yuri Yamamoto), propus a análise de um trecho de um desses artigos já escritos no século XXI. É o pensamento sobre o que eu denomino de Ator Lunar. A “lunaridade” ou representação lunar no Radical seria aquela em que o ator trabalha com as polaridades: a manifestação solar dos sentimentos e a manifestação da sombra dos sentimentos. O ator deixa a sua emoção ser sombreada pela emoção contrária, permitindo-se encontrar na expressão de um determinado sentimento a sua sombra, o seu contrário, a sua dialética.
*Proponho que pra encerrar você fale sobre o Teatro Radical de hoje. Quais são os desafios radicais que se apresentam pra você agora?
- As questões de hoje apontam para distinção do que é poética e do que é estética no Teatro Radical, me entendendo como mais um entre os encenadores radicais e não como um parâmetro delimitado que deve ser seguido do ponto de vista formal. Embora tenha em mim a figura do fundador, do propositor da poética e da ética, o Radical não se limita à minha personalidade de encenador. O modus faciendi do Teatro Radical se consolidou como um patrimônio que vem sendo partilhado por outros encenadores e suas variadas estéticas, ainda que esses diversos diretores preservem os fundamentos da Poética: a procura do átomo da peça, a concisão dialética posta em uma ação fundamental que atravessa a peça de ponta a ponta, a aplicação da repetição criativa e o compromisso de um teatro antropocêntrico no qual a ação física prioritariamente determina os sentidos da Cena. Então, não se deve encarar o Teatro Radical como uma estética do ator/diretor/dramaturgo Ricardo Guilherme, mas sim como um conjunto de pensamento e um sistema de procedimentos dos quais eu sou o formulador, o iniciador, sem que esse dado histórico faça das minhas pessoais predileções estéticas a referência a ser copiada. Que não se confunda poética com estética. O Radical implica uma ética em uma poética capaz de gerar inumeráveis estéticas. É um instrumental para a expressão dos artistas e como tal me transcende, transcende as experiências da Associação de Teatro Radicais Livres e ao longo de quase trinta anos já demonstrou a consolidação dessa transcendência na prática de mais de cinqüenta encenações, oriundas de vários grupos, e na análise de monografias, dissertações e teses.
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