segunda-feira, 17 de agosto de 2015

É Proibido Proibir

No teatro, como também nas demais manifestações artísticas, houve toda uma geração que ao viver a transgressão e encarar a repressão antes e depois do dia 13 de dezembro de 1968 fez a hora e não esperou acontecer. Jovens de esquerda, com as suas diversificadas tendências, estabeleceram no palco, apesar do AI-5, a sintonia com a revolução que estava escrita desde maio nos muros de Paris: É Proibido Proibir. 

Porém, no meio do caminho tinha, não uma pedra, mas a arma dos soldados da censura: a tesoura. Corta, corta! Inclusive os palavrões. Personagem não podia dizer nem merda. Convenhamos: era uma merda. E o pior é que na fala em cena não caberia, como n’O Pasquim, substituir o “nome feio” por um asterisco. Que fazer? Não fazer, não dizer. 
Para que uma peça pudesse ser encenada, durante os chamados Anos de Chumbo, produtores deviam submeter o texto e o espetáculo à censura prévia. E os censores poderiam ver alusões sub-reptícias à União Soviética até mesmo em Shakespeare. A propósito de uma montagem de Um Bonde Chamado Desejo, de Tennessee Williams, no Rio, agentes da Polícia Federal cismaram que a expressão “gorila” dita pela protagonista Blanche duBois a um de seus desafetos estaria se referindo a algum militar. Diante da paranóia geral, muitas vezes fazia-se necessário recorrer à desobediência civil. Nestes casos, seria recorrente durante a temporada de uma peça um diretor reunir o elenco nos bastidores e advertir: Cuidado! A produção informou que há um censor na primeira fila. Temos de modificar às pressas aquela cena em que o coro popular protesta de punhos cerrados. Hoje todos devem levantar os braços mas com as mãos abertas. 
Navalha na carne dos textos, obras liberadas com corte ou completamente interditadas, dramaturgos chamados a depor na DP, sob ameaças. Mesmo alguns como o autor de Antígona. Afinal, esse tal de Sófocles pode ser um ativista do Pcbão e é preciso checar se seu nome completo consta da lista dos subversivos procurados pelo regime. Vamos ver, vamos ver: Só-fo-cles. Mas Sófocles de quê? 
Após 1964, e sobretudo de 1968 em diante, até a abolição da censura prevista pela Constituição de 1988, o teatro brasileiro conheceu a barra pesada oficial e oficiosa, inclusive a da ação paramilitar do Comando de Caça aos Comunistas. A classe teatral do Rio, por exemplo, em face de tantas e tamanhas interdições, chegou a apelar para uma greve. E então a ficção atravessou a realidade. Artistas se postaram nas escadarias do Teatro Municipal como se empunhassem brechtianamente os fuzis da senhora Carrar. Não representavam personagens numa história; eram personagens da própria História exigindo Liberdade, Liberdade. Transportavam, assim, a tragédia do palco para a vida. Para a roda viva. Nem encenação nem dramaturgia mas atores cumprindo o papel de atores sociais, conscientes de que além da persona há a pessoa. 
Fortaleza também vivenciou a euforia dessa revolução político- cultural que a edição do AI-5 interditou. Barricadas fechavam as ruas mas abriam o caminho. Em passeatas, caminhando e cantando, multidões de braços dados ou não, evidenciaram a vontade geral contra a vontade do general. Em 1968, no Teatro Universitário (UFC) – um dos epicentros do movimento de contestação ao Golpe de 1964 - Marcus Miranda e Jório Nerthal encenam Dois Perdidos Numa Noite Suja, de Plínio Marcos, escritor maldito, incômodo à chamada Redentora, e Atualpa Paiva Reis, dramaturgo e diretor cearense, questiona paradigmas comportamentais e éticos com a apresentação da peça A Moral Nas Classes. 
Ano-síntese da trajetória de uma geração que no Brasil e em todo o mundo encarnou a vanguarda de uma militância revolucionária de esquerda e a violação dos costumes, 1968 constitui o fim de um ciclo. Feliz Ano Velho. Depois dele, o réveillon do recrudescimento do governo militar. Ao invés de fogos de artifícios, bombas de gás lacrimogêneo, rajadas de metralhadoras e fileiras de Rin-tin-tins rosnando e latindo. Em 1969 e meados da década seguinte, o pesadelo subverte o sonho. 
Por vinte anos (1968-1988) - longa jornada noite adentro – bedéis das Forças Armadas, tentaram, feito bombeiros fardados ou à paisana, debelar o fogo sagrado e profano que caracteriza a vocação incendiária inerente à atividade dramática, circunscrevendo os encenadores ao dilema de um Hamlet que, de braços cruzados, entre ser e não ser, decide não ser. No entanto, a insubmissão dos artistas, uma vez impossibilitada de abrir trincheiras, pôs-se de tocaia, na encruzilhada, em vigília, deflagrando uma estratégia de resistência com textos e encenações pautados por uma linguagem cifrada para tentar driblar a temporada de caça à palavra e ao gesto. 
Assim, ante a intervenção arbitrária dos que quiseram preservar as convenções e conveniências do status quo e impedir as transformações, a geração 68 não subordinou a dinâmica teatral à inércia de ficar em vão esperando Godot. Fiel a idéias e ideais, seu Teatro soube refazer a hora para fazer e acontecer.
(texto de ricardo guilherme)

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