Se o Nordeste do Brasil foi inventado e nos inventou, se o Nordeste do Brasil ainda vem se inventando e se vem nos inventando ainda, há nesse processo de invenção a intervenção de um Teatro do e no Nordeste que foi também inventado e também nos inventa, um Teatro feito de Teatros que a história reinventou e reinventa, teatros cujas raízes geram amalgamadas matrizes que se reinventam e vem nos reinventando em rizomáticas descobertas e redescobertas, criando, assim, imaginários e narrativas que se esparramam em desvios, em desvãos, em redemoinhos que vêm e vão e vão se fazendo e desfazendo e refazendo em descaminhos.
Das plurivalências dessa teia, desse teia-tro polifônico nós – aqueles daquele ponto colateral entre o norte e o leste – vamos monoliticamente engendrando em nós e de nós a antropo-poética de éticas e estéticas que formam essa cultura de transculturalidades, a nordestinidade de um povo trans (trans-índio, trans-ibérico, trans-afro), povo provincianopolitano de urbis-orbi de uma civilização multi-tópica, de multi-topos, mas tropical.
Essa cultura de transculturalidades que degusta e antropo-deglute referencias de várias e variadas procedências, articula mentalidades diversas, de diversificadas antropologias culturais inter, intra e superpostas umas nas outras, fundindo histórias primordiais e personagens contemporâneas, imbricando falas, gestos e gestas que conectam o Nordeste para além de um Nordeste estritamente topográfico e temporal e constituindo, pois, um lugar desterritorializado que repercute e ressignifica mundos e desmundos.
Há transculturalidade e transhistoricidade na dramática nordestina, pois se herdamos dos autos, dos folguedos, das danças folclóricas e dramáticas, da literatura de cordel e dos mamulengos, das dramistas, dos circos-teatro, o referencial farsesco, lúdico, picaresco e os motivos religiosos, lendários, alegóricos e totêmicos, reprocessamos e ainda reinventamos estas referências que perpassam memórias de errâncias, lembranças de andanças.
Nossos prototeatros rememoram católicos apostólicos, os legendários cavaleiros das cruzadas e os mouros em medieva e cristã conversão; ressoam batuques de loas, agogôs de negros nagôs, afoxés de malés, ganzás de alufás, gonguês de jejês; mixam babéis de áfricas vozes; moldam adâmicos barros crus; trajam-se de guerreiros, cantam aos padroeiros; trilham sagas de justiceiros messiânicos; escutam a percussão do baticum dos bumbos, dos tambor, dos tantãs, espalhando passos em terreiros de terreiradas; repercutem falas do cais em escambos marinhos de afros-mares; fundem casa-grande e senzala; mesclam as miragens dos clãs de Pindorama às mentalidades oriundas de Belém, Meca, Jerusalém e Canaã.
Para além do âmbito de influências culturais do judaismo e o cristianismo, também elementos provenientes do mundo árabe nos envolve. Fomos tocados pela fluência e a espetacularidade dos mascates, mercadores andarilhos, bem como pela lábia dos feirantes. Há nos desertões dos sertões dessa nossa lusamérica o rastro deixado pelas xepas, o eco dos menestréis curtidos ao sol em tantas andanças, marcos de nossa ancestralidade mourisca. Somos sangue do sangue das exangues genealogias de sherazades marias, nômades marias mouras. Persiste em nós - aratacas árabes, camelôs anunciantes – a fala-flor do Lácio, de laços tupi, afro, luso e mouro, a voz atávica dos intercâmbios, dos pregões em verso e prosa, das glosas e trovas que se labirintam entre as barracas e nos enredam em tempos remotos e fantásticos.
Também vindas dos sertões, das serras e das terras à beira-mar, evidenciam-se as nascentes de ritos que as nações indígenas do Nordeste vêm, ao longo dos tempos, elaborando e reelaborando para aludir à história de que são remanescentes. No Ceará por exemplo, ainda se preserva o Torém do povo Tremembé, um ritual no cerimônia da bebida do mocororó. Vê-se, então, o torenzeiro pegar a cabaça e dentro dela chacoalhar as sementes de jiriquiti para dançar o coco, a aranha e o guaxuré e animar a festa em louvor à terra dos Encantados, encantatório território sagrado. Canta-se o canto da jacanã, do caju, da tainha, da caninana, do guaxinim e do cuiabá; agitam-se as penas dos cocares, os colares e as pulseiras de conchas, nos instigando a constatar que - como o to play e o jouer – os verbos brincar e representar são sinônimos e a palavra brincante indica o ator do tradicional teatro popular brasileiro.
No Nordeste a religião católica, professada pelos ibéricos e resignificada em sucessivos contatos multiculturais, nos deixou, todo um legado expresso em inúmeros autos populares e proto-teatros como aquele que ainda repercute nas bandas cabaçais, sobretudo a dos Irmãos Aniceto. Seus integrantes são performers-brincantes, ao mesmo tempo músicos, dançarinos e atores. As performances mimetizam sons e trejeitos de bichos: o caboré, a acauã, o gavião, o camaleão, os galos de briga, o bode, o cavalo a galope, os maribondos em ataque, o gato, o pato o pombo, o ronco do jegue, o cachorro caçador de onça.
Por tradição que remonta à época da catequização dos índios Cariri na povoação de Miranda (hoje, Crato/CE) – justapondo mitologia indígena e culto de imagens católicas – a atuação desse teatro cabaçal se dá em louvor a Nossa Senhora da Penha. É ao redor ou diante desta imagem sacra que pelo menos originalmente de maio a agosto os brincantes atuam em festa de agradecimento pelas safras de inverno ou pedindo a intercessão da Virgem da Penha para a concretização das safras vindouras.
Vivências multiculturais moldaram costumes, práticas, em função do complexo processo de aculturação. Outros exemplos disso seriam o sincretismo religioso a partir da correlação que se forjou entre o cristianismo e o candomblé; a capoeira que de um treinamento de luta passou a ser considerada uma coreografia e o maracatu que perdeu a restritiva acepção de festa, algazarra, e consagrou-se como um cortejo dançado. Todas essas manifestações constituem reminiscências da história de adaptação do povo negro, em meio ao regime escravagista no Brasil.
Em Fortaleza (CE), um desses focos de resistência, fez-se e ainda se faz rito teatral: os maracatus que se apresentam em período carnavalesco. Forma-se, assim, uma corte, uma coorte, uma festa-gesta, em longo cortejo sacro, atro teatro, de si mesmo o simulacro, pois uma gente em sua maioria morena tisna na cara a máscara da sua própria cara ancestral. São descendentes de retintos que repintam de preta pintura a textura que a pele preta já tintura. São caras morenas que portam máscaras negras. Em cortejo solene, entoando loas, uma corte de cor desfila, sob a égide da calunga do clã, em alusão transhistórica aos matriarcados de tribos africanas.
Na encenação que tem como objetivo e ápice a coroação da Rainha, eis algumas personas:
1. o negro do incenso que abre o séquito com seu incensório a defumar a rua, em atitude que augura com essa densa e perfumada fumaça a emanação dos bons fluidos;
2. o preto velho, o proto, o antropo-pai, o tetravó griot dos maracatuqueiros, o longevo representante daqueles negros e pardos que no século XVIII organizavam encontros e caminhadas festivas em nome da Irmandade dos Homens Pretos da Nossa Senhora do Rosário.
3. a mucama, ama preta de brancos, a babá dos brancos bebês, a nêga Nanã que nana os nenéns de Ioiô e Iaiá, ama-de-leite, leite branco do peito preto que substitui o seio da Sinhá;
4. o balaieiro cujo balaio frugal traz as frutas arrancadas do usufruto e do desfrute dos proeminentes proprietários da terra;
5. a aia, a afro-Afrodite, a afrodisíaca mucama da cama, a dionisíaca preta do branco, a bacante do branco brincante, a leiloada do escambo, a escrava aos molambos desembarcada do Porto das Jangadas, a nêga fulô que o colono luso sevicia, a nêga dos quartos e dos peitos fartos que chora o parto de pardos bastardos.
6. o índio, o brasilíndio, o ameraba das tabas dos Tabajara, o morubixaba das praias que com arcos e flechas, zarabatanas e tacapes enfrenta as cruzes e os obuses das caravelas; o tuxaua dos iracemares, o xamã, o pajé tupi de Tupã, o Tupãjé, o Tupai de Iracema, cunhã do cauim da jurema, o tropicameríndio expropriado das iracematlânticas terras;
7. a rainha, de manto, cetro e coroa, a imemorial matriarca, diva divinal sob o pálio do pajem, a negra em trajes de gala, a áurea e negra rainha;
8. o batuqueiro em baticum de tambor, bombo, bongô, zabumba, tarol, atabaque, agogô, afoxé, tantã, curimba, berimbau, ferro, mucaxixi gonguê e ganzá, em baque acelerado ou compasso esparso, pro passo mais lento.
A cada ano, o maracatu do Ceará incorpora ao cortejo referências à história da presença negra no Brasil: escravos degredados, pretas leiloadas pros ofícios, pros serviços, pros suplícios e pras sevícias; as crioulas, criadas das casas-grandes; as iaôs, as iabás; ícones dos catimbós, da macumba, dos quilombos; negróides ancestrais de sambistas, capoeiristas e passistas dos Congos, personificações de orixás: Nanã, Iansã, Iemanjá, Oxossi, Omolu, Exu, Xangô, Oxumarê, Ogum e Oxum, dentre outros.
A chamada cultura nordestina resulta dessa interpenetração cultural, interface de influências que vão ao longo do tempo sendo reprocessadas, reinventadas. Essa vocação para absorver e redimensionar múltiplas e variadas culturas tem se mostrado um traço determinante na formação do que denominamos de nordestinidade e nos ensejou uma capacidade de apropriação que nos permite forjar novas identidades para o que assimilamos. Não fizemos nem fazemos uma transposição pura e simples. Ressignificamos o que absorvemos. E os nossos teatros refletem esse processo de cristalizações que foram sendo modificadas pela ação do tempo.
Somos frutos desse violento encontro de civilizações, de contatos pontuados pela intolerância e pela prepotência que caracterizam as assimilações do oprimido em relação à cultura do opressor, mas que também assinalam influências do opressor em relação à cultura do oprimido.
A nordestinidade, pois, não é um estereótipo, mas uma dinâmica de filtros, de intercâmbios, de atualizações que, por conseguinte, produzem teatros que se entendem no e do Nordeste para além dos rótulos que o circunscrevem a priori a uma prototípica estética, viciada do ponto de vista formal e recorrente quanto aos temas.
Contrapõe-se a essa mentalidade a idéia de que o desafio para o Teatro no século XXI é, entre outras proposições, a superação de uma dramaturgia-repórter na qual a abordagem do autor sobre uma dada realidade se circunscreve a uma visão testemunhal, regida pela busca de verossimilhança e, conseqüentemente, pela mimetização da fidedigna circunscrição sociocultural das personagens.
Propugnamos por uma dramaturgia-poeta que transcende o testemunho para criar personagens onidimensionais que articulem os domínios de um determinado tempo-espaço e as referências multitemporais. Propomos a criação de personas que a partir do Nordeste não se restrinjam às delimitações geográficas e históricas para possibilitar uma arbitrariedade poética capaz de inventar uma supra-realidade, polifônica, polissêmica que conjugue recriação do real e criação do irreal, ação dramática, performance e intervenção teórica.
Eis em síntese nossa proposta: constituir um olhar totalizante que considere as inter-relações, as interseções significativas, as transculturalidades e as transhistoricidades do Nordeste; ensejar um teatro radical, com cenas de um teatro explícito, um teatro pautado pela teatro-Lógica que - absorvendo a matéria-prima constitutiva da cultura popular do Nordeste – possa continuar a reprocessá-la em fontes alternativas de novos e revolucionários paradigmas; fomentar um teatro capaz de expressar memória e imaginação e de conectar tradição, adições de tradições e contemporaneidade.
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