Sábato Magaldi, no livro Panorama do Teatro Brasileiro, se refere aos séculos XVII e XVIII como O Vazio de Dois Séculos, considerando um hiato histórico entre o declínio do Teatro Catequético, em fins do século XVI, e a aparição do Teatro Romântico, já no século XIX. Embora seja procedente a consideração desse interregno, sobretudo se basearmos nossas análises pela literatura dramatúrgica do período correspondente a esses duzentos anos, é preciso verificar que nos séculos XVII e XVIII o processo de formação cultural do Brasil, apesar das invasões estrangeiras e por conta mesmo da colonização, se mantém produtivo. Do ponto de vista antropológico, não são vazios esses séculos, porque neles se dão importantes ciclos econômicos que, por sua vez, produzem dinâmicas culturais, com conseqüências inclusive sobre a história das artes cênicas brasileiras. É neste período, por exemplo, que as manifestações dramáticas populares, influenciadas pela presença da mão de obra escrava, negra, diversificam um processo de aculturação que desde os primórdios do chamado Descobrimento vinha sendo encetado apenas pelo contado do branco com o índio. Mesmo considerando-se que todo esse processo de influências se intensificou e se consolidou no século XIX, não se pode negar que ele remonta aos séculos anteriores. A contribuição do negro, presente na cultura brasileira em função da escravatura já se faz notar, com relevância, no século XVIII. Somos enquanto povo frutos desse amálgama judaico-cristão, indígena e negro. Nossa brasilidade dramática começa a ser desenhada nesse período para ir, então, se consolidando no século posterior, o século XIX. O que chamamos cultura brasileira advém desse violento mas frutífero encontro de civilizações. Foram, por exemplo, as negras mucamas que educaram, informalmente, os filhos do sangue escravocrata. Da voz das amas de leite vinham os acalantos e as histórias que encantaram o imaginário infantil. O negro se apropriou da língua portuguesa e, como diria Gilberto Freyre, a moldou com diminutivos, com corruptelas, abrandando, adocicando a prosódia. No terreiro em volta da Casa Grande crianças herdeiras dos senhores de engenho vivenciaram experiências lúdicas com os negrinhos oriundas da senzala. Toda uma inventiva, oriunda de trocas culturais, originou brincadeiras, danças, mitos e foi partilhada ao longo dos séculos. As vivências multiculturais moldaram costumes, práticas, em função do complexo processo de aculturação. Exemplos disso seriam o sincretismo religioso a partir da correlação que se forjou entre o cristianismo e o candomblé; a capoeira que de um treinamento de luta passou a ser considerada uma coreografia e o maracatu que perdeu a restritiva acepção de festa, algazarra, e consagrou-se como um cortejo dançado. Todas essas manifestações constituem reminiscências da história de adaptação do povo negro, em meio ao regime escravagista no Brasil. Também as artes, em especial as artes dramáticas refletiram esses contatos multiculturais resultando na aparição, por exemplo, de autos populares, dentre os quais o Bumba-meu-boi, cujo enfoque incide sobre a relação do colono com o gado e ressalta a figura do vaqueiro. Mateus, o protagonista do Bumba-meu-boi, nos remete à condição do oprimido que está a serviço do dono da terra, do patrão e usa, como os heróis picarescos, artimanhas para a seu modo driblar a opressão. O auto nos apresenta um boi indomável, cuja imortalidade lembra a simbologia eucarística, pois enquanto na missa se ritualiza a morte de Cristo, nele o boi também morre e as carnes são simbolicamente repartidas. A religião católica, aliás, nos deixou um legado expresso não apenas em autos, mas também em folguedos, em danças. Citemos aqui como exemplo o pastoril no qual as chamadas pastorinhas cantam loas ao Menino Jesus. As expressões dramáticas populares, em versos cantados por alas que entram em disputa, são marcas de influência medieval. Na Contra-Reforma, a Igreja Católica se apropriou do teatro, como instrumento para difusão dos seus princípios. A espetacularidade teatral foi usada como estratégica contra-reformista na Europa e o Brasil, tão fortemente marcado pelo trabalho de catequese dos jesuítas, herdou e reprocessou esse mecanismo de propaganda religiosa. A própria Paixão de Cristo encenada até hoje pelo povo nas ruas é um resquício do medievo. Fomos influenciados pelos autos sacramentais, pelas moralidades e pelos mistérios, gêneros medievais, de propagação do cristianismo. A obra de José de Anchieta, no Teatro Jesuítico, é herdeira dessa tradição que propugna a moral cristã, condenando o que considera vícios e realçando o que julga como paradigma de virtudes para os novos cristãos catequizados. No século XVIII essa teatrografia sacra, que discorre sobre a ética e os dogmas católicos, ainda repercute, embora de forma anônima, apócrifa, no que a literatura chama de autos dramáticos tradicionais populares. Mas é preciso considerar também o aspecto profano de todo essa dinâmica de assimilação. A Igreja Católica chegou mesmo a proibir encenações nos templos e isso contribuiu para a profanização do teatro. Afora esse dado histórico, circunstancial, deve ser levado em conta que o nosso âmbito de influências culturais inclui não somente o judaismo e o cristianismo mas também a religiosidade africana, indígena e até elementos religiosos provenientes dos mundo árabe e protestante. A cultura brasileira, em sua base estrutural, resulta dessa interface de influências que vão ao longo do tempo sendo reprocessadas, reinventadas. A língua portuguesa exemplifica essas intercessões, pois esteve e está eivada de palavras e expressões que advém do árabe, do iorubá e do tupi-guarani. Somos resultantes dessa interpenetração cultural que faz, por exemplo, a nossa música preservar, no canto, alguns melismas próprios do modo árabe de cantar. Essa vocação para absorver e redimensionar influências de múltiplas e variadas culturas tem se mostrado um traço determinante na formação do que denominamos brasilidade e nos ensejou uma capacidade de apropriação que nos permite forjar uma nova identidade para o que assimilamos e transformamos. Não fizemos nem fazemos uma transposição pura e simples. Abrasileiramos o que absorvemos. Resignificamos. E os nossos autos dramáticos refletem esse processo de cristalizações que foram sendo modificadas, pela ação do tempo, em resignificações variadas. Assim como a dramaturgia de Gil Vicente que dialoga, em sua estrutura e em sua temática, com o teatro sacro medieval mas transgride a mentalidade e a doutrina da igreja católica, nossa cultura tradicional, dramática, se deixou também permear por elementos de profanidade. Igual procedimento está em Ariano Suassuna quando, por exemplo, subverte em O Auto da Compadecida a usual imagem de um Jesus de nariz afilado e olhos azuis para fazer surgir diante dos olhos surpresos de seus personagens um Cristo negro. Outra subversão reside no fato de o cangaceiro sanguinário ser aceito no céu enquanto o Bispo e o Padre são condenados ao inferno. Suassuna transgride lógicas arraigadas no imaginário cristão e popular embora faça um teatro que crie interlocuções com este mesmo imaginário. Esse recurso de se servir do inconsciente coletivo para redimensioná-lo, de alguma maneira, com aspectos e nuances renovadores, surpreendentes, é empregado por toda a literatura universal desde os gregos. O Teatro Grego parte da mitologia e a reinventa, a questiona. Shakespeare também redimensionou, com a sua inventividade, tramas pré-existentes. Toda grande obra artística, de certo modo, dialoga com a cultura popular, com as temporalidades, com as trans-historicidades, até porque é próprio da cultura popular essa dinâmica, independentemente dos aportes da chamada cultura letrada. Os artistas populares, anônimos e afeitos à oralidade, são abertos a essa permeabilidade de atualizações, de influências. Afinal de contas, a cultura popular é algo vivo, pulsante, que preserva mas que também reprocessa valores. E essa dinâmica de reprocessamentos tanto influencia quanto é influenciada. Sim, porque os povos oprimidos, como o índígena e o africano escravo, assimilaram influências da cultura opressora do branco europeu mas também, ao reprocessá-las, influenciaram a cultura do opressor, moldando, por exemplo, a língua oficial, o português, a religiosidade cristã, a culinária etc. O próprio Anchieta, ao conceber o seu Teatro Jesuítico, não o fez como um traslado do teatro sacro medieval, pois teve de adaptar-se à mentalidade do índío e incorporar elementos estéticos da cultura indígena, ainda que de forma estratégica e manipuladora. Até mesmo a opção pelo teatro como instrumento de catequese não se deveu tão-somente ao fato de esta arte vir sendo instrumentalizada pela Contra-Reforma, na Europa, mas também porque a Companhia de Jesus detectou, no seu diagnóstico sobre o modus vivendi do indígena, a propensão dos índios à espetacularidade das danças, dos jogos dramáticos, das máscaras. Neste sentido, não nos caberia dizer que Anchieta é o pai do teatro brasileiro, já que antes dele já havia nas comunidades indígenas uma cultura cênica. Ao considerarmos esta precedência, Anchieta seria, não o pai, mas um espécie de tutor do nosso teatro. Sua obra se apropria de uma inventiva e a ela justapõe a inventiva contra-reformista, gerando e gerindo, assim, o que os historiadores chamam de teatro catequético, cujo objetivo era aculturar o indígena, transformando seu politeismo em monoteismo cristão. Essa catequese por intermédio do teatro compreende o período que se inicia com a chegada de José de Anchieta ao Brasil em 1553 e entra em declínio a partir da sua morte em 1597. Entretanto, esse declínio não deve ser creditado apenas à morte de Anchieta, até porque o emprego de representações cênicas para enfatizar ensinamentos religiosos constituía não uma iniciativa pessoal mas uma política de ação institucional da Companhia de Jesus. Dentre os fatores determinantes para que caísse em desuso essa prática pedagógica aliada ao teatro figuram circunstâncias políticas do Brasil, no século XVII como as invasões holandesa, espanhola e francesa, que puseram em risco a hegemonia de Portugal no Brasil colonial e seu modelo de dominação organizada a princípio pela instituição das Capitanias Hereditária e, em seguida, pela instauração do poder dos governadores gerais, Tomé de Sousa, Duarte Coelho e Mem de Sá. Além dos freqüentes desrespeitos ao Tratado de Tordesilhas, que dividia as terras do Novo Mundo entre portugueses e espanhóis, devemos considerar no século XVIII o genocídio praticado pelos embates das chamadas Entradas e Bandeiras. As circunstâncias de lutas entre os bandeirantes, os colonos, os quilombolas e os colonizadores, respaldados ou não pelo Tratado de Tordesilhas, desfavorecem a consolidação do teatro jesuítico que, aliás, já havia cumprido o seu papel, aculturando toda uma geração de curumins ao longo de mais de quarenta anos, de 1553 a 1597. O teatro patrocinado pela Igreja Católica, sempre tão atrelado ao calendário oficial de festividades religiosas, sofreu soluções de continuidade, em função do imperialismo oriundo dos países que punham em cheque, com as invasões, o domínio de Portugal sobre o Brasil. Nações indígenas, aliadas aos portugueses, aos espanhóis, aos franceses e aos holandeses enfrentavam-se, movidas por interesses territoriais e econômicos, e as disputas decorrentes dessas articulações políticas também determinam o fim de um ciclo em relação ao teatro. Essas disputas contribuíram para a dissolução do teatro catequético mas a verdade é que essa modalidade teatral, por si mesma, já vinha desde o século XVII perdendo sentido, pois cumprira a função que se impusera, de catequizar gerações que, uma vez transfigurada em seus padrões comportamentais, os transmitiria às gerações subsequentes. Além da consolidação do aprendizado, há que se considerar também o quanto fatores como os acasalamentos inter-raciais, a escravização e até o novo ciclo de extermínio dos índios implementado em função da ocupação do território brasileiro pelos bandeirantes foram impossibilitando as estratégias iniciais da catequese, obrigando esta a restringir-se, a confinar-se nas chamadas Missões Jesuíticas. As conseqüências de todo esse conturbado processo acirram no indígena o sentido de não-pertencimento que o antropólogo Darcy Ribeiro chama de ninguendade, um sentir-se numa espécie de limbo no qual os vínculos referenciais de identidade já não podem se estreitar nem com a cultura da mãe indígena, descartada pelo colonizador, nem pela cultura do pai, associada à violência da colonização. Temos, então, aqui um ser que já não se reconhece como índio mas que também não se reconhece como branco, um miscigenado, condição que precisará de tempo, de experiência vivencial, para engendrar suas especificidades culturais. Somos, nós, os brasileiros, frutos desse violento encontro de civilizações, de contatos pontuados pela intolerância e pela prepotência que caracterizam as assimilações do oprimido em relação à cultura do opressor mas que também assinalam influências do opressor em relação à cultura do oprimido. Tomemos como exemplo esse cadinho em que resultou a língua portuguesa falada no Brasil. O que convencionamos chamar de Tupi-Guarani é uma codificação do colonizador, uma tentativa de dar unidade lingüística a uma variedade enorme de línguas nativas. Mesmo assim, houve um determinado momento em que o Tupi-Guarani chegou a ser proibido, como forma de expressão, mas resistiu, sobreviveu em inúmeros termos do português falado no Brasil. Apesar de toda a violência do processo de aculturação, podemos afirmar que esta aculturação se fez também, em certa medida, no colonizador europeu. Ele também foi, "aculturado" pelo oprimido e teve de apropriar-se de sua cultura para dominar. Moldou a cultura do Outro mas também foi moldado por ela, o que comprova que o processo de imposição de uma cultura requer adaptações, resignificações etc. Esse fenômeno, portanto, não se restringe tão-somente às inter-relações de índios e brancos mas abrange toda formação multifacetada do homem brasileiro. Com a absorção da cultura negra deu-se o mesmo. A língua portuguesa no Brasil adotou termos do iorubá, do nagô etc. Resultamos dessa mistura que incorpora inclusive os cristãos novos, judeus que, sob a tutela da Santa Inquisição - para fugir de perseguições religiosas e preservar seus patrimônios - se converteram ao catolicismo, embora muitas dessas conversões sejam questionadas, pois no recesso dos lares mantiveram suas práticas judaicas. Consideremos ainda que uma expressiva leva de africanos era muçulmana e teve de adaptar-se à cultura cristã no Brasil. Por todos esses aspectos de convivência com múltiplas visões e costumes, vê-se então que o Brasil é resultante de interpenetrações culturais, formadoras do que poderíamos chamar de pan-brasilidade. Somos a resignificação dessas culturas, um misto de originalidades de povos distintos, uma cultura judaico-cristã-afro-árabe-indígena.
Incrível o texto!
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