terça-feira, 30 de junho de 2015

Entrevista de Ricardo Guilherme com Haroldo Serra

Entrevista de Ricardo Guilherme com Haroldo Serra, realizada no Teatro Radical ( Rua Dragão do Mar, 531) em 03 de agosto de 2000.


RG

Haroldo, inicialmente eu queria que você dissesse seu nome completo, sua filiação.



HS

Meu nome completo é Luiz Haroldo Cavalcante Serra. Virei Haroldo não por causa do teatro, mas também por causa de uma tia minha, muito, eu diria pernóstica, que achava Luiz um nome muito comum e Haroldo ele achava mais sofisticado. Foi a primeira pessoa que passou a me chamar de Haroldo. Quando eu comecei a fazer rádio, aproveitei e passei a ser Haroldo Serra, porque geralmente em rádio a gente evita os nomes muito grandes.

RG
Quando você nasceu e onde ?

HS
Eu nasci no dia 03 de dezembro de 1934, em Tamboril, filho de Francisco Soares Serra e Maria Cavalcante Serra. Minha mãe ainda é viva e esse ano está fazendo noventa anos.
RG
Conte seu primeiro alumbramento com o teatro.

HS
Foi no interior com o meu tio Franco, meu tio inesquecível. Ao invés do meu tipo inesquecível, eu tenho é o meu tio inesquecível. Ele fazia aqueles espetáculos típicos do interior, estilo Carlos Câmara, burletas. As moças cantavam e os rapaz representavam. A coisa era interessante. Ele tinha um baú onde guardava os figurinos. Nos espetáculos dele não se fazia como sempre se fazia nas cidades do interior, em que o figurino era a própria roupa dos atores. Não, nas peças que ele fazia usava-se uma roupa especialmente feita pra cena. Ele era pintor e o cenário dele era pintado. A própria boca de cena do teatro operário lá de Tamboril era um transatlântico que ele havia pintado.

RG
Esse teatro era o Círculo Operário de Tamboril ?

HS
Toda cidade do interior naquela época tinha o Círculo Operário. Havia um movimento cultural muito bom no interior.

RG
De que ano você está falando ?

HS
De quarenta e oito ou sete. Eu já tinha certa noção. Em 44 eu já tinha feito dez anos e já acompanhava esse tipo de trabalho. Aquilo vai ficando na gente. Eu ia muito a teatro. As companhias viajavam muito. O teatro era efetivo em função da família. A companhia era o marido, a mulher, os filhos, os cunhados, ou atores contratados que formavam uma espécie de família. E tinha o navio que era a maneira mais econômica e prática de viajar, porque as companhias viajavam com cenário, móveis, figurinos.

RG
Você chegou a ver companhias de fora lá em Tamboril ? 

HS
Não, lá não. Quando muito, havia entre cidades vizinhas uma troca de informação.

RG
Você trabalhava nessas peças do seu tio ?

HS
Não, eu era garoto. Só assistia, deslumbrado. Era a época em que começavam a ter radiadoras, radio-amplificadora e ele criou uma. E aqui e acolá ele deixava eu ajudar a anunciar uns discos, umas coisas.

RG
Diga o nome dele. Deve ter sido um nome importante do teatro do interior do Ceará.

HS
Era Franco Cavalcante. Na verdade era Franklim Cavalcante, mas a gente chamava Franco. É em homenagem a ele que o meu filho se chama Hiroldo Franklim.

RG
E depois, você fez teatro em Tamboril ?

HS
Não, nós só fizemos teatro em Tamboril uma ocasião em que você estava inclusive comigo, quando a gente fez no Projeto do Mobral a Alvorada. A gente foi a tantos lugares e terminamos não passando, não indo a Tamboril com a Caravana da Cultura .
RG
Com que idade você vem de vez de Tamboril pra Fortaleza?

HS
Eu vim com um ano ou um ano e meio. Mas todas as férias eu passava em Tamboril.

RG
Essa relação com o seu tio Franco é, então, esporádica, nas férias ?

HS
É. O interior, naquela época, era muito agradável e diferente de hoje. Todo mundo se conhecia. Hoje, há a universidade. Apesar de importante pro nosso Estado, foi, na minha opinião, a universidade que acabou a vida rural. Os pais começaram a mandar os filhos pras faculdades, na capital. E a cidade do interior não tem capacidade de trazer de volta os filhos já formados. Ao invés do filho voltar, o filho traz é o pai pra capital. E isso foi esvaziando a sociedade interiorana. Naquela época, em Tamboril a sociedade se dividia em segunda e primeira. A avenida tinha o círculo de dentro e o círculo de fora. No círculo de fora ficava o pessoal da primeira e no de dentro ficava o pessoal da segunda, as domésticas, as lavadeiras, o pessoal mais pobre. Mas havia uma convivência até harmoniosa. Nenhum lado interferia no outro. Quer dizer: nas festas da sociedade da primeira, o pessoal pobre não ia mas no samba promovido pelos pobres os rapazes iam com muito cuidado pra não criar atrito. Os rapazes furavam o esquema.

RG
Você veio, definitivamente, morar em Fortaleza e aqui, como foi que você se reencontrou com o teatro?

HS
Eu fiz parte do pulo da morte. Você sabe o que era ? Não? É o seguinte: vizinho ao Teatro José de Alencar tinha o Centro de Saúde, e o muro alto que separava o Teatro do Centro de Saúde ficava a um metro ou um metro e meio, no máximo, do foyer, daquela parte descoberta do foyer que dá pra varanda. Então a gente entrava pelo Centro de Saúde, que de noite não estava funcionando, e subia no muro e pulava pra dentro do teatro. 

RG
Pra ver, de graça, os espetáculos ?

HS
Às vezes a gente não podia pular logo porque podiam ver da portaria. Aí, a gente ficava por ali um pedaço, depois a gente pulava, ia descendo a alameda, e ia pra geral. Nesse tempo, a escada da geral era só de um lado, do lado direito de quem entra, e a esquerda era livre. Aí a gente entrava e terminava assistindo teatro de graça.

RG
Que idade você tinha ?

HS
Treze, quatorze, quinze anos.
RG
Você assistia teatro já querendo fazer teatro ?

HS
Não, eu não tinha essa idéia. Era só espectador.

RG
Um espectador que, depois, foi tragado pelo rádio.

HS
Exato. O rádio, pra mim, era mais palpável. Surgiu uma oportunidade na Rádio Iracema, que foi inaugurada em 1949 ou 50, e eu fiz teste pra locutor e fui aprovado. Eu e o Valdir Xavier. Eu não tinha relacionamento com o pessoal de teatro, porque Fortaleza até 1950, pelo meu conhecimento, não tinha um grupo atuante. Tinha o pessoal do Geraldo Markan, que fez Simbita e o Dragão, mas eu não sei bem a data. Nesse período, todo mundo se reunia na Praça do Ferreira e na Praça tinha o banco dos aposentados e o banco onde ficava a mocidade. Nessa época, funcionavam duas emissoras, a Rádio Iracema e a PRE-9, e na Praça do Ferreira a gente ficava conversando: eu, o Augusto Borges, o Guilherme Neto, o João Ramos e outros. A gente era viciado em cinema. O B. de Paiva assistia da primeira fila e eu ficava um pouco mais longe. A cidade era tão pequena. Eu morava onde hoje é o Banco Safra, a dois quarteirões da Praça. Eu ia pro Moderno, pro Majestic ou pro Cine Rex, na General Sampaio, ou pro Cine Luz, na Praça da Estação, e a todos os filmes eu assistia. E quando não tinha mais o que assistir, a gente ia ver as reprises. Era um vício muito grande.


RG

No cinema tinha muro da morte também ou vocês pagavam ?



HS

Não tinha o muro da morte mas no Diogo a gente entrou de graça algumas vezes. O Diogo tinha umas coisas côncavas, que eram enfeites, assim na parede. A gente tentava se esconder por ali e às vezes dava certo. Outras vezes, a gente se escondia, mas o fiscal descobria e quando o cabra via a gente ele botava pra fora. Ninguém tinha a menor vergonha disso não. Olhe, no Moderno, a entrada era no meio e as laterais eram a saída. Na hora que terminava o filme, tinha uma separação do pessoal, um obstáculo de mais ou menos um metro e meio, de madeira trabalhada, e quando o público ia saindo, a gente se abaixava por trás dessa espécie de tapume e ia entrando. Se o cinema estivesse cheio, a gente conseguia, mas quando tinha pouca gente, a gente não conseguia não.
RG
Como foi o seu chamado para o teatro? Como é que você passa de cinéfilo a ator de teatro?

HS
Uma noite, a gente estava exatamente na Praça do Ferreira, batendo papo, falando de cinema, e de repente, não sei se foi o B. de Paiva ou o Miranda, que no meio da conversa, perguntou: Haroldo, você não tem vontade de fazer teatro? Eu, como me entusiasmo com muita facilidade, me entusiasmei. Eles estavam querendo montar uma peça e já tinham decidido que seria O Morro dos Ventos Uivantes, numa adaptação do B. de Paiva.

RG
Isso em 1951.

HS
A minha preocupação, ainda não consciente, era por uma coisa organizada que tivesse possibilidade de crescer. O espetáculo ia ser encenado mas não tinha ainda todos os componentes do elenco. Eles iam apresentar a peça em Antônio Bezerra, que tinha um Círculo Operário, mas...

RG
Nessa época já era Antônio Bezerra? Não era ainda o Barro Vermelho ?

HS
Ainda chamavam de Barro Vermelho mas oficialmente era Antônio Bezerra. Aí, eles queriam apresentar lá, mas eu disse: Não, não, vamos fazer a peça no Zé de Alencar. Você é doido, Haroldo; ninguém tem acesso ao Teatro Zé de Alencar. Ora, a gente consegue. E aquela idéia ficou me animando. O B disse: então vamos tentar. Aí a gente convidou pro elenco uma irmã minha, Míriam Soares, que na verdade era Socorro Serra. Eu, por causa da rádio, já tinha contato com comerciantes e fui atrás de apoio, porque a gente resolveu fazer a peça com figurinos. Isso, pra época, foi uma coisa diferente porque era o ator que levava sua roupa e entrava em cena. Mas eu sempre achei que quando a gente quer uma coisa, desde que a gente saiba o que quer e não queira demais, a gente consegue. Se você não pode montar um determinado texto, ou por não ter o número de atores ou por não ter condições financeiras ou por não ter um elenco à altura do autor, você não deve montar a peça. Você tem de escolher uma coisa que você possa fazer e, se você vai fazer, tem de realizar aquilo com toda a seriedade. 

RG
Que tipo de locutor você era? O que você fazia no rádio?

HS
Eu fazia o que se chamava locutor de caixeta, locutor de anúncios, e participava também de programa de auditório. Eu era locutor comercial do programa do Irapuan, do Matos Dourado, e fazia também animação de programa. Eu fazia um programa chamado Festa de Aniversário. As pessoas estavam aniversariando e a gente conseguia presente de firmas. Era uma coisa bem provinciana, de recado, a mãe mandando beijos pra filha que estava fazendo aniversário.

RG
Você conheceu o B. de Paiva, no início dos anos cinqüenta, na Praça do Ferreira?

HS
Foi e já em função do espetáculo.

RG
E onde vocês ensaiavam?

HS
No Teatro São José. O pai do B era ligado ao Círculo Operário e a gente conseguiu ensaiar lá.

RG
Como vocês conseguiram se apresentar no Teatro José de Alencar?

HS
Através do seu Afonso Jucá. Pedimos a pauta e conseguimos. Não houve o que eles pensavam que ia haver. Todo mundo pensava que ia haver uma reação, que ninguém não ia conseguir o Zé de Alencar porque o grupo não era conhecido. Mas não houve nada disso e a gente conseguiu se apresentar. Eu tinha uma rádio na mão e consegui uma boa divulgação. O Eduardo Campos, nesse tempo, já ajudava e eu consegui uma reportagem sobre a peça no Unitário e no Correio. Saiu também uma matéria no Diário do Povo. O Lúcio Melo, que era jornalista do Diário do Povo, foi assistir ao espetáculo e se apaixonou pela Socorro, minha irmã, que era a estrela. E tirou a moça do teatro. A peça fez um sucesso e a gente nem estava esperando essa repercussão toda. Ninguém esperava aquele tipo de reação. A gente tinha consciência que estava fazendo o máximo dentro das nossas possibilidades, mas a peça foi saudada com muito entusiasmo pela imprensa. Porque a montagem tinha uma coisa nova. Por exemplo: logo nos primeiros espetáculos, a gente aboliu o ponto no Ceará. O Teatro Experimental foi o primeiro grupo a abolir o ponto. Tinha um ponto do lado de dentro do palco lembrando as falas mas não tinha o buraco do ponto, a cúpula. O rítmo do teatro com ponto era diferente. Naquela época, o ator tinha ainda a obrigação de esperar o que o ponto dizia e a coisa era aceita não como uma coisa ruim. E a gente viu que, ao tirar o ponto, o ator passava a ser mais responsável porque ele tinha obrigação de estudar o texto. Você sabe que no teatro antigo cada ator recebia um texto só com as suas falas e as deixas. Se houvessem duas deixas iguais era arriscado o ator se adiantar e dizer a sua fala antes da hora. Na Comédia Cearense a gente já começou a receber o texto inteiro, pro ator poder ler a peça e analisar o texto.

RG
Em relação ao nome Teatro Experimental de Arte, essa palavra, experimental, continha alguma insinuação estética? Ou seja: o termo teatro experimental se referia a algum tipo de experimentalismo ou é só referente a uma experiência teatral, uma vivência apenas ?

HS
Não, eu acho que era experimental não no sentido de vanguarda. Ninguém tinha essa visão, essa pretensão. Era experimental por querer aprofundar, aperfeiçoar e dar informações às pessoas. Era um grupo muito organizado. O Teatro Experimental de Arte surgiu por causa do Paschoal Carlos Magno. Nos anos cinqüenta, o Paschoal fez uma temporada por todo o país, com grandes atores, Sérgio Cardoso e muita gente boa, espetáculos bem montados. O teatro que o Paschoal fazia era um teatro respeitadíssimo. Tanto que os seus participantes foram considerados depois os melhores atores do teatro brasileiro. Essa experiência do Paschoal foi, aliás, a única semente que eu vi prosperar no teatro. Em todas as cidades por onde o Paschoal passava, ele ia semeando teatro, grupos.

RG
E aqui, no teatro cearense, influenciados pelo Paschoal, surgiram o Teatro-Escola do Ceará e o Teatro Experimental de Arte.

HS
É, foi fruto disso. O nosso é de 1952.

RG
O Teatro-Escola foi criado em 51 mas estreou em setembro de 52 e o Teatro Experimental em novembro de 52.

HS
Exato. O grupo era muito preocupado. Nós nos reuníamos no Teatro Zé de Alencar e começou a aparecer muita gente. De fato, são dois grupos que aparecem na mesma época mas com um distanciamento social e até com um distanciamento de proposta. O Teatro-Escola tinha os seus componentes, filhos de altos comerciantes etc. Tinha a Dona Nadir, tinha a Marister, da família Gentil, dona de banco. O grupo, por influência do Flávio Phebo, não gostava de espetáculos pobres. O Flávio sempre escolhia montar espetáculos pomposos. Já o Teatro Experimental, não. Talvez por uma opção inconsciente, uma coisa intuitiva, nós começamos no lugar certo, pelo caminho certo: peças de autores brasileiros.

RG
Que peças foram as mais importantes do Teatro Experimental ?

HS
Nós fizemos, por exemplo, o Paiol Velho, do Abílio Pereira de Almeida, que foi a minha primeira direção. O Teatro Experimental foi uma experiência muito rica. Eram quatro diretores: eu, o B, o Miranda, o Hugo Bianchi. Então, o Teatro Experimental podia ter aquela obrigação de estrear uma peça quase todo mês. Na medida em que o Hugo ensaiava uma peça, o Miranda ensaiava outra, o B, outra, e eu, outra. Quando uma estreava, a próxima já estava quase pronta. A gente ficava em cartaz quatro fins de semana. Ninguém conseguia ficar em cartaz mais do que isso.

RG
Como você passa de ator a diretor? Como você despertou pra direção ?

HS
No próprio ensaio da primeira peça. Acho que eu fui dirigir por causa do cinema. O Morro dos Ventos Uivantes a gente já tinha visto várias vezes no cinema.

RG
Mas a direção do Morro dos Ventos Uivantes não era sua. 

HS
Era do Hugo. Mas na gente a influência do cinema foi fundamental. Eu não teria condições de dirigir se eu não assistisse e não discutisse cinema. Naquela época, a Praça do Ferreira era uma Padaria Espiritual, só que as discussões eram não de literatura mas de filmes. Nesse tempo, tinha o Augusto Pontes que ficou famoso na Praça sabe por que ? Porque ele tinha um artifício. Quando ele sentia que você estava querendo ir embora, ele discordava de uma coisa que você estava dizendo e aí lançava a polêmica. Fortaleza era maravilhosa. A gente saía às vezes da Praça do Ferreira às quatro horas da manhã. Teve uma época que eu morava na rua Pedro Borges, o Beco dos Pocinhos, e o Beco dos Pocinhos era escuro como o diabo, e você não tinha a menor preocupação de ir pra casa sozinho porque não era perigoso.

RG
Haroldo, eu queria que você falasse das estratégias de sobrevivência do Teatro Experimental, das campanhas do grupo, do livro de ouro, por exemplo.

HS
O Teatro Experimental tinha farda, calça azul marinho, camisa branca de colarinho comprida e uma gravatinha preta. E quando a gente ia a uma estréia no Teatro Zé de Alencar, a gente vestia, tirava fotografia.

RG
Os atores tinham até carteirinha, não tinham ?

HS
Tinha, tudo direitinho, organizado. Eu assumi a direção comercial logo no primeiro espetáculo, porque, além de tudo, o rádio me dava uma desinibição muito grande. O Miranda ainda hoje é meio recatado; eu não. Eu chegava na loja e falava. Eu comecei a criar umas coisas interessantes. Por exemplo, duas pessoas com um só ingresso e a campanha Pague o que quiser. O sujeito entrava e pagava o que achava que o espetáculo valia. A gente ia pras lojas e pedia pra botar os convites nos embrulhos. Como é que a gente ia distribuir convite pras pessoas ? Eu bolei. Pedi pro gerente da loja deixar a moça do empacotamento botar nos embrulhos. Quando a pessoa chegava em casa, abria o embrulho e via aquele convite. Nós tínhamos também uma urna, e o B, que já gostava de discurso naquela época, dizia que as pessoas botassem na urna o que pudessem, o que o espetáculo merecesse etc. Ricardo, tinha gente que - vamos dizer assim - botava o que seria hoje cem reais e tinha também uns que escreviam um bilhete dizendo: vão trabalhar, bando de vagabundo. Havia essas brincadeiras do ceará-moleque. Tinha gente que botava pouco, mas dava uma renda.

RG
Fale dos associados do Teatro Experimental, dos contribuintes permanentes. 

HS
Nós criamos os sócios. Eles pagavam uma mensalidade e tinham direito de assistir aos espetáculos. Mas essa é uma experiência que eu não aconselho porque é frustrante. Você se lembra das pessoas que podem se associar e pagar mas quando chega , por exemplo, a trinta, não se lembra de mais ninguém que seria capaz de contribuir. A renda terminou sendo tão inexpressiva que o melhor foi não continuar com isso. Mas o grupo fazia coisas mais agressivas. Cartazes. A gente saía de noite com grude pregando cartazes. Fazia na gráfica e botava o anúncio da gráfica no cartaz pra não ter de pagar a impressão.

RG
E os figurinos ? Eram feitos especialmente pra peça?

HS
Eram.

RG
Eu pergunto isso porque na época era prática o ator se encarregar da roupa do personagem. 

HS
Mas fazer a roupa especialmente pra usar na peça foi uma exigência do Hugo. Ele, como todas as pessoas do balé, tinha essa preocupação com as roupas, com o cenário. E o grupo teve condições e a gente fez isso. As roupas do Morro dos Ventos Uivantes eu não me lembro quem desenhou. Mas eu sei que a gente fez uma coisa de nível.

RG
E vocês pagavam com permuta de anúncio, no programa ?

HS
É, mas eu botava dinheiro, o Miranda botava, o B. botava. Mas, Ricardo, a gente sempre conseguia fazer o espetáculo seguinte. Isso é que eu acho fundamental. A gente nem pensou em ir a governo pedir auxílio. Não tinha essa informação de que o governo seria responsável pela cultura.

RG
Nem havia Secretaria de Cultura ou Fundação Cultural, na época.

HS
Não, e a gente encontrava formas. A minha irmã costurava, as outras também. O espetáculo estava pra começar e a gente lá dentro batendo prego. Aí o sujeito dizia: é a tua hora. Então, você entrava e representava.

RG
Como foi a sua formação em teatro? 

HS
Começou com o Waldemar Garcia.

RG
Vocês são todos autodidatas.

HS
E havia também a influência do cinema. Naquele tempo eu tinha mais tempo de ler. O Edésio era um livraria na Guilherme Rocha. Embaixo tinha a livraria normal e em cima, uma espécie de sebo. E você ficava ali escolhendo e dava cinqüenta centavos por cada livro, uma quantia assim. Você saía de lá e levava Flaubert e todos os outros escritores franceses. Eu nunca gostei muito da literatura americana. Sempre fui mais voltado pra literatura francesa e a gente comprava esses livros baratos e a gente lia e trocava esses livros com os outros. A formação era de autodidata, e o Waldemar Garcia começou a orientar. Ele aparecia nos ensaios. Diga a palavra to-da. Na época a gente achava que o Waldemar era superado. E eu hoje ensino isso adoidado, porque o ator não consegue dizer. Pra mim, a coisa mais importante, a primeiríssima coisa, é o público escutar a peça. Sem escutar o texto não há espetáculo. Por isso é que eu ainda hoje digo pro ator: diga como o Waldemar. Ele dizia pro ator pronunciar as palavras até chegar à última sílaba e a gente mangava do Waldemar. Quando você pede o exagero do Waldemar, o ator não dá o exagero mas se aproxima e de repente você teatraliza. Eu tive muita consciência dessa teatralização que está desaparecendo em função dos teatros pequenos, de bolso. Mas naquele tempo era imensa a distância entre o ator e o espectador da última fileira. O Waldemar brigava em função disso e a gente não aceitava. Ele ficava chateado e tal.

RG
E ele chegava aos ensaios sem ser convidado?

HS
Ele estava por ali, pelo teatro, e entrava. Naquela época, era tudo menos complicado. A gente sempre dava um jeito. Eu me lembro que a gente dava dez tostões ao Queirós e ele deixava a gente entrar no Teatro Zé de Alencar, de noite. Aí o grupo ensaiava. No Teatro Experimental era assim. A gente tomava posse do Zé de Alencar. Às vezes, nós não tínhamos a chave do portão do teatro e a gente pulava o muro pra poder ir lá na casa do Queirós.

RG
O Queirós morava no porão do teatro.

HS
A gente batia na porta dele, ele abria e dizia: Vão ensaiar? Não precisa ensaiar não, não vem ninguém ver a peça. O Queirós era maravilhoso. Tem uma história dele com uma companhia de fora que é ótima. Essa companhia precisava de uma rede, pra cena, e tinha esquecido de trazer a rede. Disseram lá no Zé de Alencar: O Queirós tem rede. Mas tem uma coisa: ele não empresta não. Os caras da companhia foram até o Queirós: Seu Queirós, a gente precisa de uma rede. E ele: meu filho, não sei se tem. A gente tem uma gorjetinha pro senhor. Aí, ele: De quantas redes você precisa? Imediatamente, aparecia a rede.

RG
Com as peças do Teatro Experimental vocês viajaram algumas vezes, não?

HS
O Morro dos Ventos Uivantes, pela pompa, se fosse montado hoje, do jeito que a gente montou, seria um espetáculo respeitado. A gente ficou com vontade de mostrar a peça noutros cantos. Projetamos, então, uma viagem a Sobral, a Teresina e a São Luiz do Maranhão, mas não podia ser só um espetáculo. Aí o Miranda dirigiu a Irene, do Pedro Bloch, um espetáculo muito simpático, leve. O Miranda tinha um tipo de interpretação muito adequado ao personagem que ele fazia na peça, um rapaz um ingênuo, acanhado, que não tinha coragem de se expressar. O Miranda ficou muito bem no papel. E a minha irmã fazia a Irene. A peça fez um sucesso muito grande. Nós viajamos fazendo essas duas peças: O Morro dos Ventos Uivantes e Irene. A irmã do Miranda, a Alda, escreveu A Força do Coração. Durante a viagem, o grupo ia ensaiando A Força do Coração, mas não havia pretensão de apresentar esse texto na viagem. Só quando a gente voltasse pra Fortaleza. Ensaio durante a viagem era pra ganhar tempo. Bom, aí nós fomos pra Sobral. Estréia, no Cine Teatro Rangel. Fizemos o Morro e depois a Irene. Foi um sucesso tão grande, Ricardo, e a gente ficou tão entusiasmado, mas não tinha mais público na cidade pra gente fazer não sei quantas sessões. Naquele tempo, numa cidade como Sobral, você fazia três ou quatro apresentações e não tinha mais público. O pessoal da cidade pedia pra gente montar outra peça. Não sei quem foi que disse: vamos fazer A Força do Coração. Mas como, se ninguém ensaiou? A gente faz uma leitura, improvisa e faz. Vamos. A gente passou a tarde toda lendo a peça pra fazer de noite. Nesse tempo tinha o Nil Rocha que era o ponto. Se houvesse o esquecimento de algum ator, ele pontava. Como ele não estava em cena, na peça, ele ia dos bastidores acompanhando a peça, com o texto na mão. Rapaz, foi uma loucura. Ninguém sabia quem entrava e quem saía. Eu fui lá fora, por trás da cortina, e trouxe o Nil Rocha pra dentro de cena. Botei ele atrás de um sofá pra ele ficar pontando a peça de mais perto. Em Sobral tinha um crítico, fulano de tal Pinto. Quando terminou o espetáculo, esse tal crítico chegou pra gente e disse: Olhe, essa foi a melhor peça da temporada. Nós ficamos tão encabulados, não em relação ao público que não notou nada, mas entre a gente, achando que tinha sido uma irresponsabilidade. Terminou a gente nunca mais fazendo a peça.

RG
Tem uma história engraçada com essa peça, que se passou nos bastidores, com a mãe do Miranda...

HS
Foi com a minha mãe. Ela, vendo a aflição dos atores, disse pra mim: meu filho, tira essa peça, fecha o pano e bota a Irene.
RG
Você tinha que idade nessa época, Haroldo, pra ter mãe acompanhando na viagem?

HS 
Talvez 17, 18 anos.

RG
Se a mãe de um ator acompanhava o filho numa viagem de teatro, imagine a mãe de uma atriz.

HS
Minha mãe foi nessa viagem em função da minha irmã.

RG
Ah, pra tomar conta da Socorro.

HS
E meu pai também foi. Soltar uma moça pra viajar assim era uma coisa impensável. Até pros ensaios, as moças nunca iam sozinhas. Eram sempre acompanhadas por um irmão ou por um primo. Então, nós fomos a Teresina, a São Luiz e na volta conseguimos voltar de graça num navio. Pagamos as passagens fazendo um espetáculo no decorrer da viagem, dentro do navio. A gente fez no navio a Irene.


RG
Já no final dos anos 50, 56 por aí, vocês do Teatro Experimental, tiveram um teatro.


HS

Como a gente tinha a pretensão de fazer mais espetáculos do que o normal, era importante ter um espaço próprio. A bolação dos sócios foi pra poder pagar o aluguel. Quando a gente conseguiu ter um número suficiente de sócios, a gente alugou, até que ficou insustentável. Projeto cultural sem auxílio de governo, quando é uma coisa que depende de patrimônio, fica difícil levar adiante.


RG
Onde era o teatro?

HS
Era na rua do Imperador esquina da Pedro I, nos altos. Fortaleza era uma província e era mais fácil nesse tempo ensinar às pessoas onde ficava o teatro.

RG
Qual era a lotação, a capacidade desse teatro?

HS
Acho que uns cem lugares.

RG
Qual foi pro Teatro Experimental a importância de ter esse espaço?

HS
A importância foi mostrar como é difícil e quais são os caminhos. Mas nós tínhamos responsabilidade. Nós não éramos adoidados. O Teatro Experimental começou e terminou sem deixar de pagar todos os seus compromissos.

RG
O teatro tinha palco, urdimento?
HS
Tinha um praticável. O espaço não era muito largo. Pra ir pro camarim você passava pelo palco. Mas como os atores chegavam antes, não tinha problema não.

RG
O nome era Teatro de Bolso, com placa lá fora?

HS
Era Teatro de Bolso , mas não me lembro se tinha placa.

RG
E vocês se apresentaram muito lá?

HS
Não, só algumas vezes. Não foi uma coisa muito demorada não. O período da montagem desse teatro já é perto do tempo do Miranda ir embora, do B. de Paiva ir embora etc.

RG
Em 54 o B. de Paiva já tinha ido. E o teatro é de 56.

HS
É. Foi o Miranda que foi embora logo depois.

RG
Em 57.

HS
É. O B. já tinha ido e o Hugo foi embora antes do B. de Paiva.

RG
Ficou só você.

HS
E, de repente eu achei que não era legal continuar com o Teatro Experimental porque era um teatro de equipe, com quatro diretores, e ficar fazendo o Teatro Experimental sozinho eu achei que era uma usurpação.

RG
E quando o grupo acabou, Haroldo?

HS
Quando eu montei a Comédia Cearense.

RG
O Teatro Experimental é de 52 a 56, mais ou menos, não é? E a Comédia Cearense é de 57.


HS

Mas antes nós fizemos Sartre e a estréia nacional do Lampião da Raquel de Queirós. O Teatro Experimental foi um grupo de prestígio. O Teatro-Escola tinha prestígio na alta sociedade e era muito mais eventual do que a gente. Fazia peça de vez em quando.


RG

E com fins filantrópicos.

HS
Era. Nós, não. Tínhamos aquela voluptuosidade de querer estar em cena. A gente ficava maluco quando não estava ensaiando.
RG
Em 57 você continua na rádio e cria a Comédia Cearense.

HS
Pois é. E esse nome, Comédia Cearense, vem do seguinte. Naquela época, todo cearense que ia pro Rio se acariocava. Eu tinha verdadeiro horror a esse tipo de coisa. Eu ainda hoje tenho horror às pessoas que não prestigiam a sua cidade, o seu habitat, o seu estado, o seu país. Quando o sujeito se muda e perde os seus hábitos, ele também se perdeu. O respeito pelo Nordeste, antes da década de sessenta, era muito pouco, e pro grupo eu queria um nome que fizesse um sujeito de qualquer lugar do Brasil saber que aquele grupo era do Ceará. Muita gente acha que eu botei Comédia Cearense por causa da Comédie Française mas não foi. Foi pra ter o nome do Ceará.
RG
Muitos da sua geração foram embora e você não foi.

HS
Eu nunca tive essa preocupação de ser um nome nacional. Eu sempre achei mais fácil fazer teatro aqui em Fortaleza do que chegar e tentar fazer no Rio de Janeiro. O Aderbal, que foi embora pro Rio muito tempo depois, sofreu, passou necessidades, porque não queria pedir dinheiro à família, fez coisas que não gostaria de ter feito. Nesse ponto eu sou até meio comodista. Ir embora pra tentar fazer teatro lá fora é uma luta muita insana. Com o Teatro Experimental e com a Comédia eu sabia que podia realizar meu trabalho aqui. Nós recebemos, posteriormente, convite pra sair. O Orlando Miranda me dizia: Você tem que vir pro Rio. E eu dizia: E quem é que vai ficar fazendo teatro lá em Fortaleza? Eu não fui embora não foi pra ser o herói; foi uma opção talvez até preguiçosa. E, além do mais, todas as coisas que eu quis montar aqui, eu montei.

RG
E a Comédia? Como você constituiu o grupo?

HS
A Neide Maia participou da formação, o Matos Dourado, também. A Hiramisa já namorava comigo.

RG
Já ?

HS
Não me lembro bem. Acho que sim. Ela chegou a ver peça do Teatro Experimental.

RG
Você casou com a Hiramisa quando ?

HS
Em 59. Não, em 58. Em 59 nasceu o Júnior.

RG
Mas ela não está na primeira peça da Comédia. Em 57, a formação do grupo é você, a Glice Sales e o Palmeira Guimarães.

HS
Esse rapaz era inteligentíssimo, um locutor brilhante, culto, e depois foi pra Rádio Nacional do Rio de Janeiro, que era a maior rádio do Brasil, a mais séria. Tempos depois, esse rapaz abandonou tudo e se tornou um místico. Andava aí pelo mundo.


RG
Você podia falar dos primórdios da Comédia Cearense.


HS

Eu li uma peça chamada Lady Godiva, do Guilherme de Figueiredo, e me entusiasmei pelo texto, pela agilidade da ação, pela objetividade das falas. Naquele tempo ainda havia muito texto prolixo, rebarbativo. O autor achava que tinha de exaurir aquele assunto pro espectador captar. O Guilherme vinha com uma dramaturgia mais moderna, de diálogos rápidos. E nós estreamos com esse texto. A gente conseguiu ficar com o espetáculo em cartaz durante muito tempo. Se não me engano, a Lady Godiva teve quarenta apresentações. Em seguida, montamos do R. Magalhães Júnior A Canção Dentro do Pão.


RG
É aí a estréia da Hiramisa, não é?

HS
A estréia da Hiramisa foi numa peça com o Rui Diniz, o Pluf. A gente foi pra lá ver a peça e uma moça que fazia a Mamãe Fantasma não tinha vindo. Todo mundo, então, olhou pra Hiramisa. Disseram: você tem coragem de fazer o papel ? Aí a Hiramisa entrou em cena.

RG
Isso aconteceu numa apresentação do Pluft, ainda como uma montagem do Teatro de Brinquedo ?

HS
Foi, com o Teatro de Brinquedo.

RG
Então, a Hiramisa estreou não na Comédia Cearense mas no grupo do Rui Diniz?

HS
Foi. A gente tinha visto os ensaios da peça porque a gente era muito interligado. O Rui era amigo.

RG
Ele namorava a Glice, na época.

HS
É.

RG
A Hiramisa, até esse episódio, não era ainda uma pessoa de teatro. E como foi que vocês se conheceram?

HS
Ela não era de teatro mas depois eu soube que ela era uma amadora na Escola Normal. Ela tocava acordeon e se tivesse alguma declamação pra fazer, era ela que fazia.

RG
Eu tenho uma foto dela na dança do Cateretê, do tempo da Escola Normal. E como essa menina da Escola Normal conhece o locutor da Rádio Iracema?

HS
Eu morava no caminho da Escola Normal, no Beco dos Pocinhos, e via quando ela passava. Houve o que na época a gente chamava de flerte, aquele olhar de um pro outro. Naquele tempo era assim: se o flerte fosse um pouco mais intenso, o rapaz criava coragem pra conversar com a moça. Eu morava na Pedro Borges e as meninas da Escola Normal passavam por ali. Aí a gente teve esse flerte. Um amigo meu era conhecido dela e ele me apresentou a ela pessoalmente. A gente foi à casa dela, depois de inventar uma desculpa pra ir. Terminou realmente saindo o namoro, o casamento, três filhos e sete netos. Quando ela fez a Mamãe Fantasma ela foi aplaudida pelo elenco, como se já fosse uma pessoa de experiência. Então, a gente começou a fazer leituras com a Hiramisa. Nosso noivado foi interessante. Eu ia pra casa dela, sentava na calçada e a gente ficava decorando o texto. Nessa época eu criei uma técnica que até hoje eu uso, de vez em quando. É o seguinte. Se você está passando o texto e errar, não volta a dizer o texto do ponto onde errou; volta pro começo da peça. Quase como um castigo.


RG
A Hiramisa morava onde?


HS

Na Tristão Gonçalves. Vizinho à casa dela, assim no mesmo quarteirão, tinha a casa da Cira Pereira e da Ivone. Era um pessoal acostumado a esse processo de fazer roupa pros espetáculos da Festa da Primavera, pras montagens que havia no Colégio da Imaculada Conceição. Então, foi na Cira que a gente viu uma possibilidade de fazer as roupas da Canção Dentro do Pão. Ela se responsabilizou pra fazer as casacas que a gente usava em cena.


RG
É uma peça que se passa na pré-Revolução Francesa.

HS
Uma peça muito ágil, que tinha sido feita pelo Sérgio Cardoso. A gente se preparou e fez um figurino muito bonito. Tivemos até a pretensão de fazer o lançamento da peça de uma forma interessante. Nós anunciamos a peça numa placa, feita de uma folha de compensado. Conseguimos aquele pessoal que fazia os cartazes dos filmes, os letreiros. E fizemos uma placa com um slogan: O Ceará já tem teatro.
RG
Quanto tempo a peça ficou em cartaz ?

HS
Uma média de oito ou dez fins de semana. E também fizemos apresentações extras, vendendo ingressos pra empresas, lojas, comerciantes.

RG
Os atores ganhavam cachê?

HS
Com Comédia Cearense a gente fazia assim: quando sobrava o dinheiro de uma montagem, a gente dividia. A gente ajudava principalmente as pessoas que não eram do grupo. O Waldemar Garcia, por exemplo, se ele desse uma ajuda na maquiagem. A gente procurava ajudar o ator não em função da sobrevivência dele mas em função do que ele gastava pra fazer o espetáculo: uma merenda, o ônibus etc. Desde cedo a gente teve esse tipo de preocupação. Foi a fórmula de fazer da gente. Ajudar no que era possível mas ter sempre como garantir uma continuidade de trabalho. A nossa maior preocupação não era tanto com o espetáculo em cartaz mas o com o espetáculo seguinte.

RG
Nos anos trinta, houve uma tentativa de se fazer um teatro infantil permanente, com temporadas no Centro Artístico, sob a direção do William Alcântara. O teatro para crianças até então não era uma prática. Anos depois você, com a Comédia Cearense, tenta também produzir temporadas de teatro infantil de forma continuada. Eu queria que você falasse dessa experiência sua, no final dos anos cinqüenta e início da década seguinte.
HS
Tudo que a gente fez foi sempre objetivando fazer uma coisa de forma continuada. Eu achava, nesse tempo, e ainda acho que a cultura não se pode comprar numa livraria; a cultura é uma vivência, e o cearense, naquela época, não tinha a vivência de ir ao teatro. Então, ficava difícil trabalhar só em função da platéia adulta. A gente sentiu que era preciso incutir na criança a necessidade do hábito de ver espetáculos de teatro. Além do mais, tinha muita gente disponível pra fazer teatro, gente de rádio, por exemplo. Eu me lembro que trabalhou com a gente o Gonzaga Vasconcelos, o Emiliano Queirós, o Ary Sherlock.

RG
De quanto em quanto tempo estreava uma nova produção da Comédia Cearense destinada ao público infantil?

HS
Uma média de dois meses. Dependia da peça.

RG
Era sempre no Teatro Zé de Alencar?

HS
Era. Enquanto a gente não aprontava o próximo espetáculo, a gente fazia a peça ficar em cartaz.

RG
Um repertório geralmente de fábulas, os clássicos, não era? 

HS
As peças da Maria Clara Machado, O Rapto das Cebolinhas, A Bruxinha Que Era Boa, e principalmente as fábulas. Eu acho que tudo que foi sucesso num determinado tempo, se for adequando ao período que a gente está, eu tenho quase certeza que vai funcionar. Se a fábula vive através dos anos e se continua eterna, realmente vai funcionar sempre. Mais lá na frente, nos anos sessenta, as pessoas começaram a querer mudar isso. Queriam que até no teatro infantil você fizesse teatro engajado. Eu sempre fui uma pessoa com tendência mais de centro-esquerda, mas eu acho que havia um exagero nessa cobrança. Afinal, você tem uma responsabilidade com o público. Nos quarenta anos da Comédia Cearense eu criei um prêmio em forma de um tripé, porque tem sempre uma coisa que muita gente diz mas que nem sempre se cumpre: o teatro é o autor, o ator e o público. Eu acho que o tripé de todo teatro tem de ser esse mas eu já presenciei grupo sem a menor preocupação com o público. Se a peça não faz sucesso, as pessoas começam a achar que o público é atrasado e não entendeu a proposta. Ninguém jamais diria que foi por causa da pretensão do espetáculo. Mas eu acho que o público é importantíssimo. Se um quadro do Degas ou do Da Vinci não fosse visto por ninguém, não seria nada. São as pessoas que vão prestigiando, vendo, comprando e a coisa vai se firmando. Eu acho que você tem de ter respeito ao público. A gente já fez espetáculo social, político, mas sempre se preocupando com o público. Até lá no Rio, quando as pessoas viam a diversidade de textos montados pela Comédia Cearense, muita gente me perguntava: Haroldo, você não acha que é muito ecletismo? A razão desse ecletismo é proposital. Na medida em que o Ceará não tinha grupos dedicados a determinadas correntes e escolas, nós, em benefício do público e do ator, tínhamos de fazer essa variedade de escolas para o aprendizado nosso.

RG
Nos anos sessenta, Fortaleza já começa a ter um canal de televisão. Acontece também em 1960 a volta do B. de Paiva ao Ceará e vocês se reencontram e ele, então, estréia como diretor da Comédia Cearense. Eu queria que você desse um depoimento sobre esse período que vai de 60 a 67. É a época em que vocês dois partilhavam um trabalho. Vocês até chegaram a, digamos, terceirizar o Teatro José de Alencar, através de um convênio com o Estado. Esse momento foi a primeira grande fase da Comédia.

HS
Quando a gente fala desse tempo, tem gente que pergunta: Por que Fortaleza tinha mais público nesse período e agora não tem mais? A gente regrediu? E de quem é a culpa? Da televisão? Do cinema? Eu nunca me frustrei com esse tipo de comparação, porque eu sempre fui muito consciente das dificuldades do teatro. O primeiro caminho pra você fazer teatro é se conscientizar das dificuldades. O teatro é de todas as atividades de arte a mais penalizada. O pintor pode pintar seus quadros, embalar e ir pro exterior sozinho, fazer sua exposição. O músico compõe, também sozinho, mas no teatro não é bem assim. Eu me lembro que nós fizemos o Demônio Familiar, e o Orlando Miranda viu, se entusiasmou e queria levar o espetáculo pro Brasil todo. Ficou entusiasmado com o cenário e o guarda-roupa do Flávio Phebo, e também com o desempenho dos atores. Ele queria levar mas como é que a gente ia levar, se as pessoas do elenco tinham as suas obrigações de sobrevivência, seus compromissos fora do teatro? É difícil. A gente teve essas frustrações. A minha maior frustração de oportunidade de prestígio foi quando O Morro do Ouro foi convidado em carta do Jacques Lang para participar do Festival de Nancy. Era o primeiro grupo do Ceará a ter esse convite. Veio um francês ao Brasil e esse francês veio ao Ceará me entrevistar, pra saber da possibilidade da gente levar o espetáculo pro festival.

RG
Antes desse episódio, houve aquele outro com o B. de Paiva, envolvendo a peça O Cancioneiro de Lampião. Veio um convite pro espetáculo se apresentar no exterior mas a UFC preferiu investir na compra de umas vacas.

HS
No Morro do Ouro tinha muita gente. Era um elenco de umas 38 pessoas.

RG
Na segunda versão.

HS
É. A repercussão da peça foi pela montagem que a gente fez no Rio em 72, e mais em função dos prêmios que nós ganhamos no Festival de São José do Rio Preto. Além desse convite pra ir a Nancy, recebemos convite também pra ir a um festival de teatro na Itália, mas em todos eles as passagem eram por conta do grupo e você imagina o que é conseguir 38 passagens. Na mesma época de Nancy, estava na Europa a Orquestra Sinfônica Brasileira sem ter condições de voltar e a televisão fazendo campanha pra garantir a volta dos músicos ao Brasil. Esse tipo de coisa eu não faço. Ir só com a passagem de ida, não. Eu só vou se estiver com as passagens da volta na mão.


RG

Quando o B. de Paiva retorna do Rio e assume a direção da Comédia Cearense, você abdica da sua posição de diretor. É o B quem assume a direção dos espetáculos. E você passa a ser mais o ator e o produtor. Como é que se dá isso? 


HS

Uma equipe só funciona se cada membro tem responsabilidade pelas suas funções e as cumpre adequadamente. É difícil conseguir isso, mas com o B nós criamos uma dupla que estava fadada a conseguir. Ficou acertado que eu me dedicaria às produções e o B faria a direção. Eu gosto de dirigir até mais do que atuar , mas tive de abdicar em função do projeto, da idéia. Eu achei que era muito mais viável o B ficar encarregado da direção. Eu sempre ajudei muitas vezes, na concepção dos espetáculos, porque já nessa época eu tinha bastante experiência de cena, e tudo isso facilitava. No elenco, a gente tinha muita gente de experiência. O Zé Humberto, por exemplo, que vinha do Teatro Experimental de Arte. Olha, a Comédia teve sempre esse ar de família: o B e a Tereza, eu e a Hiramisa, o Zé Humberto e a Aileda, a Gracinha e o Edilson. E hoje continua ainda mais família: eu, a Hiramisa, o Hiroldo, o Júnior. É a família Serra.

RG
É dessa época o convênio que a Comédia fez com o governo pra assumir o Teatro José de Alencar. Vocês, então, produziram inúmeros espetáculos. Quais eram as bases desse convênio?

HS
O Teatro José de Alencar naquela época não tinha diretor e a gente, entusiasmado com a volta do B, teve a idéia de fazer teatro de forma contínua. Eu sempre digo que quando o teatro é eventual, o público também será eventual. No dia que o Ceará tiver uma continuidade real, nós vamos ter público continuamente. Nessa época a Comédia tinha um elenco muito eclético, com facilidade de escalação. O Aderbal, por exemplo, veio pra Comédia Cearense. E o Parsifal, que era governador, não ajudou financeiramente, mas ele fez o convênio entre o Teatro José de Alencar e a Comédia. O Zé de Alencar nesse tempo era subordinado à da Secretaria de Justiça. O seu Afonso Jucá era o administrador e nós tivemos a idéia de um convênio, onde a gente seria responsável pela administração do teatro, mas não pela manutenção econômica do teatro. E agora , depois de todos esses anos, eu consegui outro convênio, dessa vez com o Crhistus que me permite fazer um trabalho continuado.

RG
O período do convênio da Comédia com o Teatro José de Alencar, na década de sessenta, é talvez a mais importante fase do grupo. Eu queria que você falasse dessa fase. 

HS
Nós realizamos muitas coisas, temporadas longas, com O Morro do Ouro, com a Rosa do Lagamar, com O Pagador de Promessas, A Valsa Proibida. Fizemos o nosso Nelson, com O Beijo no Asfalto. Sempre com o público prestigiando, lotando o teatro. E muita gente me pergunta: Por que isso não se repete hoje? Porque não há mais as mesmas condições. Naquele tempo nós tínhamos o Teatro José de Alencar e você podia programar um espetáculo em função do tempo que você precisasse para aprontar esse espetáculo. Os grupos, hoje, são obrigados a fazer apresentações em função da data, porque se o grupo não fizer naquela data perde a pauta e lá na frente não vai ter condições de conseguir outra. Nós não tínhamos esse problema. Não havia pressão, porque não existiam muitos grupos naquele período. Tinha o Teatro Jangada, do Narbal...


RG
O Teatro-Escola, o Teatro de Amadores Gráficos, a Companhia do Clóvis Matias....


HS

Mas nunca passou pela nossa cabeça a idéia de prejudicar outros grupos. Pelo contrário. A gente achava bom ter o espaço sempre ocupado, não somente em função das nossas necessidades. Era outro momento. Nós tínhamos, por exemplo, uma televisão que não era como a televisão de hoje, com redes etc. A TV Ceará mantinha programas locais e isso ao invés de afetar o teatro fazia era beneficiar. O Miranda trabalhava televisão, fazendo o Praxedinho que tinha uma audiência muito grande. Nas reportagens, quando estavam anunciando aquelas peças com atores como eu, a Hiramisa e o Miranda, que eram pessoas conhecidas através da TV Ceará, aquilo era beneficio pra nós.


RG
Os ídolos da televisão estavam no teatro.

HS
E havia o apoio irrestrito da televisão. As chamadas eram dadas em horários muito bons. O Hildeberto Torres falava no casamento do teatro com a televisão. Isso nunca se realizou, porque são duas linguagens completamente diversas que se completam mas que não se misturam. No entanto, havia toda uma promoção do teatro na televisão. Essas promoções e mais a qualidade do trabalho fizeram com que nós tivéssemos alguns momentos muito agradáveis de reconhecimento do trabalho da gente. Um desses momentos, por exemplo, foi quando a gente estava fazendo O Morro do Ouro ainda na primeira versão dirigida pela B. de Paiva. Como eu já lhe disse, a gente tinha sempre a preocupação de não prejudicar as companhias de fora ou os grupos daqui. O Morro estava em cartaz no Zé de Alencar há trinta dias direto. Só não se fazia espetáculo na segunda-feira, mas de terça a domingo era gente comprando ingresso com antecedência. Acontece que chegou uma companhia do Rio e nós tiramos Morro de cartaz para que essa companhia ocupasse o teatro. Como eu ficava ali pelo saguão, via as pessoas se aproximando da bilheteria. Foi quando uma pessoa entrou pra comprar ingresso, me viu e disse: hoje eu vim ver O Morro do Ouro. Aí eu disse: olhe, hoje não é o Morro; é uma companhia do Rio. E esse espectador reagiu: então não vou ver não. Era assim. Tinha gente que devolvia o ingresso. As pessoas queriam ver O Morro do Ouro. E eu me lembro que essa companhia do Rio de Janeiro não teve nem um décimo do público que a gente teve. Tudo isso não só por causa do espetáculo mas também por causa do comportamento do grupo, em função também da temática da peça.

RG
O Morro do Ouro era sobre Fortaleza e a Rosa do Lagamar também.

HS
Muito tempo depois, com a versão da Rosa que eu dirigi, nós tivemos a oportunidade de fazer a Rosa do Lagamar no Lagamar e, depois da peça, a gente procurava ouvir os moradores que tinham visto a nossa montagem. Nessas discussões, eu sempre perguntava o que o pessoal achava do Rico que vinha expulsar a Rosa do seu barraco. Eu perguntava: por que, na peça, o Rico aparece com a cara branca, pintada, numa máscara ? E o público dizia: é pra gente não saber quem ele é. Quer dizer, o público entende e faz a interpretação da solução cênica que a gente dá.

RG
Mas aí já é numa versão de 75.

HS
É.

RG
Mas eu queria que você falasse de antes. Por exemplo, daquelas campanhas que você bolou como estratégia pra atrair mais público pro teatro.

HS
A gente tentava todas as formas, bolava coisas. Teatro a Preço de Cinema foi uma dessas campanhas. Outra foi a gente oferecer ingressos às firmas pra que as firmas comprassem ingresso e oferecessem aos funcionários aniversariantes da firma. Foram dezenas de promoções. Mas eu acho que o mais importante era a nossa preocupação com a qualidade do grupo. A gente se dedicava inteiramente ao teatro. O nosso trabalho fora era só pra sobrevivência de cada um. A gente era devotado àquilo. Eu nunca fiz teatro sem a garantia da minha sobrevivência fora. Eu continuo achando que em nenhuma parte do mundo, fora Nova Iorque, você consegue viver só como ator de teatro.

RG
Além de teatro, o que você fazia nessa época ?

HS
Eu fazia rádio. Eu fiz rádio até 64. Na Revolução, eu trabalhava na Rádio Dragão do Mar, que era uma rádio politicamente engajada, que defendeu a legalidade. O meu horário começava às oito horas da manhã e houve um episódio em que eu escapei de ser preso. No dia da Revolução, eu estava chegando na rádio, e já estava assim perto do prédio da rádio o exército. Eu vinha de casa e estranhei aquilo. Quando eu entrei no estúdio, estava lá o Paulino Rocha, estava também o Nazareno Albuquerque. O estúdio estava cheio de gente e todo mundo já mandando brasa e foi aí que eu tomei consciência do que estava acontecendo. Como eu não sou dessas pessoas que tomam o microfone pra também falar, eu pensei: sabe de uma coisa? Já tem gente demais aí, eu não vou nem cumprir meu horário. Aí eu saí. Quando eu peguei o carro, chegou o Exército, atrás do meu carro, com metralhadora, e prendeu todo mundo que estava no estúdio. Quer dizer, eu escapei por pouco. Mas fecharam a rádio.

RG
Fecharam porque a rádio Dragão do Mar defendia o mandato do Jango e era contra o golpe de 31 de março.

HS
A rádio ficou mais de um ano parada. Nesse período eu passei a dedicar mais tempo pro teatro. 

RG
Como a Comédia Cearense viveu o período pós-golpe?

HS
Os censores eram de uma ignorância enorme. Aquela história que diz que um deles me perguntou se eu conhecia o Sófocles não é piada. O cara me perguntou mesmo se eu conhecia o Sófocles. Não sei se tinha alguém montando ou interessado em montar alguma coisa do Sófocles e um cara da Polícia Federal me perguntou se eu não conhecia esse tal de Sófocles. Eu digo: infelizmente eu não conheço, nem sei quem é. Havia isso, essas coisas. No Morro, nessa versão musicada que eu dirigi, tinha a cena dos guardas torturando uma pessoa no pau-de-arara. Era uma insinuação, sem mostrar o pau-de-arara, mas nós tivemos de defender a cena junto à censura. Aí recebemos a liberação. No tempo da censura a gente teve muita coisa interessante. Tinha um delegado aí, que era tão entusiasmado com teatro, que não dificultava, e até facilitava muito as coisas. Ele me dizia: Quando você chegar aqui, venha diretamente ao meu gabinete. Nesse tempo eu estudava direito. A gente criou esse relacionamento, e eu falava com ele e ele mandava aprovar, sem ensaio geral.


RG
Você nunca teve problemas com a censura que levassem, por exemplo, a uma interdição ?


HS

Não tive por isso. Só teve problema quando esse delegado morreu num desastre com a mulher. Aí, quando eu fui pra censura o cara olhou pra mim e disse: E agora? Como é que vai ser? Eu digo: vai ser do mesmo jeito. Eu sou amigo de todo mundo aqui. Com você, por exemplo, não vai ter problema. Só se for com outra pessoa. E aí eu enrolei ele também e realmente a gente conseguiu. A Rosa, quando a gente chegou em Brasília e no Rio, as pessoas não entendiam como o espetáculo tinha sido liberado. Outra coisa: o Manuelito era tido como uma pessoa de direita, de apoio à Revolução, e o texto dele já era...


RG
Um habeas corpus.

HS
Eu vou contar um fato interessante. O Blanchard Girão foi assistir a uma versão do Morro e ficou entusiasmadíssimo. Ele era um cara moderado mas sempre foi mais pra esquerda do que pra centro. E ele me disse no camarim: eu vou fazer um comentário sobre a peça na rádio, amanhã, porque eu achei o espetáculo uma beleza. Ele escrevia a crônica da rádio, a palavra oficial da emissora. Eu telefonei pro Manuelito e disse que o Blanchard tinha visto a peça e ia escrever porque tinha achado a peça ótima. E o Manuelito: ele achou ótima? E vai escrever? É, na crônica do meio-dia. Rapaz, no dia seguinte o Blanchard começou essa crônica dizendo que o Manuelito era um cara voltado pra direita e fez uma série de considerações sobre a postura política dele. Mas lá no meio do texto ele diz: tudo isso fica amainado com o que Eduardo Campos escreveu nesta peça. O autor de O Morro do Ouro vive um dilema. Há uma disputa entre o Eduardo Campos, jornalista, e o Eduardo Campos, homem de negócios. E com a peça quem ganhou foi o jornalista. O Manuelito achou ótimo o texto, porque ele tinha consciência de que tinha apoiado a Revolução e as pessoas que eram contra isso não aceitariam com facilidade uma peça escrita por ele. No Rio, o Morro não obteve um maior sucesso, porque a maioria dos jornalistas de esquerda tinha raiva do Eduardo Campos e, então, muita gente deixou de apoiar. Já em São Paulo, como ninguém sabia quem ele era, o Manuelito passou como um autor de esquerda, por causa da peça.
RG
O fato de o Eduardo Campos ser o diretor TV Ceará, uma espécie de TV Globo local, daquela época, facilitou a promoção das peças dele montadas pela Comédia?

HS
Claro.

RG
Fazendo uma analogia, seria como se um grupo hoje estivesse montando uma peça do Roberto Marinho.

HS
Houve uma época em que as pessoas me diziam: ah, você monta o Manuelito porque ele é diretor da TV Ceará. Mas nunca ninguém chegou a mim pra dizer que a peça era de direita. Ninguém diria isso. Então as pessoas argumentavam e partiam pra essa questão do prestígio do Manuelito, como diretor da TV. Mas eu vou lhe contar um caso que desmente isso. Na estréia da A Donzela Desprezada, no Teatro do IBEU, você se lembra do que o Manuelito disse? Ele disse que tinha lido pra nós, da Comédia, a Donzela Desprezada e que não houve da nossa parte o menor interesse nem o menor comentário. Ele, na época, ficou até magoado porque nem o B se interessou nem eu me interessei em montar. Era uma peça de Eduardo Campos e só trinta anos depois é que a peça foi montada, e por outro grupo. Eu estou contando isso pra mostrar que a gente nunca montou uma peça do Manuelito por interesse de ter promoção e sim por uma preocupação em relação à qualidade do texto. Nós nunca montamos outros textos do Eduardo Campos, a não ser A Farsa do Cangaceiro Astucioso.

RG
Vocês montaram também O Fazedor de Milagres, em 67. Mas o cavalo de batalha foi sempre o Morro e a Rosa.

HS
As outras peças do Manuelito a gente montou porque achou que era coerente, que as peças tinham qualidade. A Donzela a gente não aceitou porque a gente achou que a peça não tinha um conflito racional. Uma moça do Pirambu ter um relacionamento, engravidar, sem ser estuprada, e fazer com que a imprensa fosse ao Pirambu cobrir aquele caso, eu achei insustentável. Mas o que interessa - e eu até já disse ao Manuelito - é que um autor que tem dois textos, como a Rosa do Lagamar e O Morro do Ouro, com uma repercussão nacional, deve se dar por satisfeito. 

RG
Em relação à política, Haroldo, você teve alguma militância partidária ? Eu estou perguntando isso porque a gente vai falar agora dos anos 70 e foi nessa década que a Comédia Cearense conviveu com o maior momento de recrudescimento do regime militar, até 74. O B. de Paiva já tinha ido embora de Fortaleza e você vai fazer as versões musicais do Morro do Ouro e da Rosa do Lagamar. Também é nessa época que você assume um cargo de confiança do governo, que é a direção do Teatro José de Alencar. Quando eu comecei a fazer teatro se dizia que você tinha ligações com os coronéis. Eu queria que você falasse da sua relação com o Estado, com a política.


HS

Politicamente, eu nunca tive ligação nem no regime militar nem depois. Da mesma maneira que eu visitava o militar, eu visitava o outro. Teatro pra mim sempre foi sempre uma coisa tão importante que eu me despreocupei de determinadas coisas. Mas eu convivia muito mais com as pessoas que apoiavam os pronunciamentos contra a Revolução. Isso não me impedia de, por exemplo, ir tratar de um apoio pro teatro com o governo. Quando a gente quis viajar, eu fui ao general Torres de Melo pedir apoio. A gente conseguiu o ônibus através dele. Eu não ia deixar de ir falar com ele só porque ele era militar. Se isso foi um pecado, eu realmente faria de novo. Não vejo como isso poderia me envolver com aquele estilo de ditadura, de jeito nenhum. Mesmo naquele período da ditadura, havia a cidadania brasileira. Nós estávamos obrigados a sobreviver. Mas a gente viveu isso através de espetáculos. Com espetáculos que tiveram uma preocupação social. A gente nunca pensou uma coisa que beneficiasse ou apoiasse o regime.


RG

Fale da terceira fase, depois que o B. foi embora. A Comédia tem três fases: primeira, só com você, a segunda com você e o B. de Paiva e a terceira só você de novo sem B. de Paiva, que começa em 67,68. 

HS
Eu discordo da idéia de algumas pessoas que dizem que a Comédia decaiu com a saída do B. Eu nunca me aborreci com esse tipo de comentário porque tenho consciência com o meu trabalho. Mas eu discordo. A Comédia Cearense só teve prêmios nacionais a partir da terceira fase. O B teve alguma ingerência nisso? Teve, porque toda a formação nossa foi conjunta, mas quando ele foi embora a Comédia Cearense não descambou, não caiu qualitativamente, não mudou a sua proposta. Terminou sendo diferente, por causa das circunstâncias. Os tempos mudaram. Eu sei que o fator trabalho é importante mas teve também o fator sorte. O filme O Pagador de Promessas ganhou a Palma de Ouro. Mas O Pagador da Comédia Cearense teve mais repercussão e eu diria até mais público do que o filme. Porque foi num período em que eu sentia no cearense uma auto-estima, em função em relação ao teatro, em relação à Comédia. A gente tinha o respeito da imprensa, da comunidade, da sociedade. Isso facilitou o nosso trabalho e isso facilitou até, de certa forma, a minha permanência. A gente tinha esse prestígio e eu não tinha essa ambição de ser estrela nacional. Por isso eu não fui pro Rio tentar carreira. Quando o B. saiu, eu disse: vamos continuar.

RG
Logo depois que o B. vai pro Rio, você monta dois espetáculos que tiveram premiações em festivais: O Simpático Jeremias e O Morro do Ouro.

HS
Quando a gente chegou no Festival de São José do Rio Preto, pela segunda vez, a imprensa começou a dizer que nós éramos os campeões e que ninguém tinha ganho tantos prêmios no festival quanto o nosso grupo. Dos doze prêmios ofertados em doze categorias nós ganhamos nove com o Jeremias. E no ano seguinte, ganhamos o prêmio do voto popular e do júri oficial. Os outros grupos concorrentes é que votavam e nós tivemos o índice de noventa e sete por cento de bom e ótimo. Isso impressionou não só a eles, do festival, como a nós também. Eu me lembro que o Hugo Bianchi, quando soube que a gente ia de novo pra São José do Rio Preto, chegou pra mim e disse: Haroldo, se eu fosse você eu não ia a esse festival. Por que? Porque ninguém ganha dois festivais seguidos. E você não ganhando, as pessoas vão dizer que você só faz o Manuelito aqui por causa do prestígio dele mas que lá fora ele não tem prestígio. Eu disse: Hugo, eu vou a esse festival de qualquer maneira, porque jamais vou me abater ou raciocinar por esse aspecto. Mas eu tive também de me resguardar. Convenci o Manuelito a ir a São José do Rio Preto pra assistir à peça lá, porque eu tinha certeza que o Morro ia ter o respeito da platéia e o Manuelito como autor estaria presenciando esse aplauso que a peça teria. Se a peça não ganhasse, não surgiria especulação de que a peça não teria agradado. Fiz isso me preocupando não com o que as pessoas daqui falassem mas preocupado com ele, com o Manuelito. Minha preocupação era com ele porque ele mesmo poderia achar que só era autor no Ceará e que lá fora não era autor. E realmente o sucesso do Morro nesse festival foi uma coisa inenarrável.
RG
Depois, mas ainda nos anos 70, você teve o Teatro Móvel. É mais uma tentativa de ter uma sede pra Comédia, porque você já tinha tentado ter uma sede nos anos 60, com o Teatro da Comédia, na Aldeota. Você podia fazer uma comparação entre esses três momentos: aquele do teatro que você tentou construir na Aldeota, na década de sessenta, a tentativa de sede com o Teatro Móvel, na década de 70, e essa fase de agora, com a parceria com o Colégio Crhistus. 

HS
O Teatro Móvel surgiu em função de eu ser diretor do Teatro José de Alencar. Primeiramente. Depois, filosoficamente a gente começou a defender o projeto. Com o Teatro Móvel, a gente teria oportunidade não só de levar nossos espetáculos nos bairros como também a gente teria a chance de não ficar tão dependente do Teatro José de Alencar. Uma coisa era eu ser diretor do Zé de Alencar e outra a Comédia Cearense ocupar o Teatro. Enquanto eu fui diretor do Teatro e também durante a administração da Hiramisa, a Comédia Cearense jamais tomou espaço de outro grupo. O fato de eu ser diretor do Teatro não me dava essa arrogância de prejudicar. Às vezes, uma pessoa ou uma associação chegava no Teatro Zé de Alencar e dizia: eu quero, por exemplo, todo o mês de agosto. Mas aquele mês estava já ocupado com outra pauta. As pessoas iam ao jornal reclamar, como se a gente estivesse querendo prejudicar o trabalho delas. Uma vez no jornal teve gente que chegou a dizer que nós só devíamos ceder o teatro para uma companhia de fora se não tivesse nenhum grupo local querendo a pauta. Aí já é chegar num extremo: deixar de atender um grupo profissional, pra primeiro saber se havia algum grupo da Federação querendo a pauta. Isso é uma coisa inteiramente absurda. A idéia do Teatro Móvel foi sobretudo pra isso, pra libertar um pouco a Comédia dessas pressões, dessas especulações. E também porque eu tinha vontade de me aproximar da linguagem do circo. Toda a nossa formação do teatro brasileiro, exceto desse teatro influenciado pelo TBC, recebeu uma influência direta do circo que era a única coisa que a gente via aqui no Ceará. O circo trazia aquelas peças junto com aquelas acrobacias. Isso foi a nossa influência, no teatro popular, assim como o cinema da chanchada etc. Mas, infelizmente, foi uma luta enorme pra conseguir o Teatro Móvel e nós conseguimos. Quando acabou a primeira empanada nós conseguimos refazer e manter o projeto. Mas esse descaso do governo pelos projetos de interesse cultural é desanimador. Eu não podia manter o teatro particularmente. A gente pode cobrir o prejuízo de uma peça ou outra, mas manter um teatro como, por exemplo, esse aqui, o Teatro Radical, com pagamento de aluguel, sem apoio do governo, não será uma coisa que você tem certeza da apuração. Você vai tentar. Foi assim o teatro que a gente tentou fazer na Aldeota. Mas chegou a hora do B. de Paiva ir embora e ele foi. Nós éramos os dois, nós nos complementávamos muito, e de repente com a ida do B eu não me senti capaz de naquele momento levar sozinho aquele projeto adiante.

RG
O terreno onde ficava o teatro da Comédia, na década de sessenta, era doado pelo governo ?

HS
O terreno foi comprado por mim e pelo B. de Paiva, pagando por mês. Não era da Comédia nem era do governo. Era nosso, pago por mês, à prestação. A Comédia Cearense nunca teve terreno nem doado nem coisa nenhuma. E o teatro não foi pra frente porque o B foi embora e eu não tinha como cobrir a parte dele.

RG
Aí o terreno foi vendido ?

HS
É, o terreno foi vendido.

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